Em busca do corpo brasileiro

Tiago Cadete apresenta em Lisboa e Porto Alla Prima, uma tentativa de ser o outro.

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Tiago Cadete partiu de representação dos indígenas datadas dos séculos XVIII e XIX
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Tiago Cadete mudou-se para o Brasil há dois anos e meio. Depois de alguns anos a trabalhar como artista associado da EIRA (estrutura de produção do coreógrafo Francisco Camacho, à qual se mantém ligado), fez as malas e partiu para estudar do outro lado do Atlântico. E, aos poucos, prolongando a sua estada por lá, deu por si a perguntar-se como iria conseguir integrar-se e adaptar-se a um país ao qual sabe que nunca pertencerá por inteiro. Como poderia ser um “brasileiro com muitas aspas”, como lhe chama, sabendo que nenhum visto, nenhum casamento ou nenhum sotaque dominado na perfeição deixaria de corresponder apenas à “camuflagem de um outro”?

Começou então a reflectir e a pesquisar material que lhe sugeria como a imagem de um país, deste país concreto, foi construída pela oralidade, pela palavra, pela pintura e pela gravura. “Como é que isso ajudou ou não a construir uma identidade brasileira”, resume ao PÚBLICO. Logo esboçou uma coreografia em que se apresentava com penas e setas de índio, em que se pintava de negro, em que tentava ser mestiço, em que aprendia alguma coisa de indígena para conseguir dizer um par de frases. Nada disso faz parte de Alla Prima, a peça que apresenta entre 27 e 30 de Janeiro no Negócio, em Lisboa, e a 5 e 6 de Março na Mala Voadora.Porto. “Tudo aquilo me parecia muito falso”, confessa. “É diferente representar um Hamlet e representar pessoas que são mesmo pessoas. Acabava por não os representar a eles nem a mim.”

Estimulado pela frequência de um mestrado em Artes Visuais, concentrou-se antes em tentar “representar o outro” com o seu corpo. Uma vez que na sua pesquisa de pinturas de final do século XVIII e início do século XIX os indígenas surgiam repetidamente nus, juntou essa pista ao modelo nu comum nas Belas Artes. Como “um viajante que foi recolher informações e agora as apresenta” ao público, Cadete despe-se enquanto um ecrã exibe citações de Lévi-Strauss retiradas do livro Tristes Trópicos ou da carta em que Pêro Vaz de Caminha descreve a sua chegada ao Brasil em 1500. Depois, o próprio corpo nu de Tiago torna-se um molde que responde a dois estímulos – num primeiro bloco, a partir da gravação das vozes de amigos que descrevem corpos encontrados nas pinturas pesquisadas; depois, diante desse mesmo imenso arsenal de obras de arte em que se documentam os corpos brasileiros em “estado puro”. Assim se faz a sua busca pelo “corpo brasileiro”, reproduzindo as posições e os gestos desses protagonistas involuntários da História que, registados pelo olhar europeu, informam e determinam quem são os brasileiros.

O outro ou o próprio
“O Brasil também é uma invenção europeia e eurocêntrica”, justifica Tiago Cadete. “A maior parte das imagens construídas sobre essa ideia de Brasil assenta em pressupostos das Belas Artes. Vemos imagens de índios que parecem deuses gregos, musculados, em poses neo-clássicas. Foram representados conforme modelos anatómicos de uma ideia de belo.” Acontece que na sequência derradeira de Alla Prima, quando apenas somos confrontados com a sucessão em vídeo cada vez mais acelerada das posições tomadas por Tiago, sem o contacto directo com as vozes ou as pinturas que antes lhe guiavam as poses, o seu corpo pouco terá de brasileiro. “Talvez seja apenas um corpo universal, que não tem raça nem género”, aventa o coreógrafo. “Na verdade, talvez ali seja sobretudo eu.”

A impossibilidade de representação do outro será porventura uma das conclusões apontada por Alla Prima – nome de uma técnica de pintura em que a imagem é sempre retocada sem deixar a tinta secar, algo que Cadete trata em termos coreográficos ao adoptar sempre novas posições ditadas pelas descrições ou pelas imagens. Se os modelos europeus nunca deixam de estar presentes na tradução que um europeu faz de outros corpos, também Tiago termina por voltar à sua roupa, como que assumindo o acto falhado de emulação do outro. E aí reside um curioso duplo sentido. Tanto o Brasil vive hoje nessa afirmação do que significa ser brasileiro livre de amarras históricas impostas por terceiros, como o coreógrafo parece render-se à ideia de que “nunca conseguimos ser o outro e talvez seja melhor olharmos para nós e sermos nós”.

A camuflagem é naturalmente estimulante. Mas nunca chega a ser pele. 

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