Quatro anos para construir um corpo com um sexo diferente

Média é calculada pelo único serviço no SNS a fazer cirurgias de reatribuição de sexo. Desde que foi criada, 27 pessoas submeteram-se a 65 operações.

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Diagnóstico de disforia de género (transexualidade) é a primeira etapa de um complexo processo CLAUDIA DAUT/REUTERS

Aqui trabalham urologistas, ginecologistas, psiquiatras e psicólogos, cirurgiões plásticos, endocrinologistas. E aqui chegam pessoas de todo o país para iniciar uma caminhada longa. A Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS), do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, constituída em Novembro de 2011, faz saber que realizou, até agora, 65 cirurgias a 27 transexuais. Em 52% dos casos, “foram intervenções do sexo masculino para feminino”.

“A mudança de sexo é um processo de transição complexo e demorado”, explica a directora da URGUS, Lígia Margarida Fonseca, em respostas por escrito, ao PÚBLICO, preparadas, faz questão de sublinhar, pela equipa. São quatro anos em média, “desde que se sigam guidelines cientificamente sustentáveis”, para quem quer levar a cabo todos os tratamentos e cirurgias — sendo que “a decisão do tipo de cirurgias é partilhada entre o médico e o doente, não havendo obrigatoriedade na realização de todos os procedimentos”.

O protocolo a seguir naquela que é, no Serviço Nacional de Saúde, “a única unidade estruturada com todas as valências”, é, no essencial, o que se segue. A primeira etapa é o “diagnóstico”, explica. Destina-se a avaliar se a pessoa tem ou não a chamada disforia de género, mais conhecida como transexualidade. As pessoas transexuais são aquelas cuja identidade de género — a identificação “psicológica” enquanto homem ou mulher — não corresponde ao sexo que lhes foi atribuído à nascença.

O diagnóstico “demora em média 6 meses”. Envolve psicólogos, psiquiatras, sexólogos e muitos exames. Tem de resultar num relatório.

A segunda etapa é... outra avaliação. Objectivo: “reconfirmar o diagnóstico”. Esta tem de ser feita num local distinto daquele onde e feita a primeira a avaliação. E nas contas da URGUS mais 3 a 6 meses.

Se há a convicção de que existe mesmo disforia de género, pode ter início a terapêutica hormonal, que é prescrita por um endocrinologista e é para toda a vida.

Para quem quer (e pode) avançar para as cirurgias, segue-se a avaliação pela Ordem dos Médicos: a Ordem pronuncia-se em cerca de 1 mês, diz a URGUS, com base nos relatórios de avaliação da primeira e segunda avaliação.

O caso dos adolescentes
O tratamento hormonal deve decorrer pelo menos entre 12 a 18 meses antes de se iniciar o primeiro procedimento cirúrgico, prossegue a nota. Este visa reduzir “os níveis hormonais endógenos” e induzir as características sexuais do sexo desejado. “As modificações pretendidas são progressivas.”

Se este tratamento tem início na adolescência — o que implica o consentimento dos pais ou representante legal — “o acompanhamento psicológico é indispensável”.

Não havendo patologias que possam constituir uma contra-indicação para as intervenções cirúrgicas — (risco de trombose, por exemplo) — chega ao dia da primeira cirurgia, que só pode acontecer após os 18 anos. Este é o culminar, como já se viu, de um processo que, por sua vez, dá início a outro.

Num caso de “reatribuição de sexo feminino-masculino”, por exemplo, “os objectivos são a eliminação da função reprodutora”, através de uma histerectomia; a eliminação dos caracteres sexuais femininos, como os seios; “a construção de um pénis, com sensibilidade táctil e erógena e que permita relações sexuais com penetração, o que pressupõe que o corpo peniano suporte uma prótese que permita a erecção”; a tatuagem da glande; a introdução de próteses testiculares...

Muitas destas intervenções são feitas espaçadamente, têm, cada uma, distintos tempos de recuperação e, no final, “alguns doentes pretendem ainda realizar alguns procedimentos complementares, nomeadamente cirurgias de contorno corporal, como lipoaspiração dos flancos e coxas”. A URGUS não discrimina que tipo de cirurgias estão nas 65 já realizadas.

Tanto no caso das mulheres como dos homens, o objectivo é sempre o mesmo: “Permitir ao doente atingir um bem-estar psicológico duradouro e uma sensação de conforto e auto-realização com o género assumido”.

Porquê só um serviço?
As cirurgias de reatribuição sexual, nome genérico dado ao conjunto de tratamentos cirúrgicos utilizados junto da população transexual com fim à transição de género, são legais em Portugal desde 1995. No SNS, começaram por ser feitas no Hospital de Santa Maria até que, em 2011, o médico então responsável se reformou. É em Novembro desse ano que nasce o URGUS em Coimbra.

No ano passado, a então recém criada Acção Pela Identidade (que se define como uma organização não-governamental que tem como fim a defesa e o estudo da diversidade de género), escreveu uma “carta-pública” ao ministro da Saúde a pedir informações sobre o trabalho da URGUS.

Face “informações contraditórias noticiadas pela imprensa”, a API queria saber exactamente quantas pessoas tinham sido operadas, quantas estavam em lista de espera, quais os “níveis de satisfação e a qualidade do serviço prestado” e por que razão “pessoas com os seus diagnósticos clínicos completos e avalizados pela Ordem dos Médicos, ao tentarem contactar a URGUS, tanto são reencaminhadas para o Serviço de Psiquiatria como para o Serviço de Cirurgia Plástica” — ao PÚBLICO a URGUS diz que a “porta de entrada” no serviço é a consulta de sexologia, efectuada por psiquiatra ou psicólogo.

Na mesma carta, a API contestava “a centralização de um serviço como este num único hospital à escala nacional”.
Júlia Pereira, dirigente da API, diz que o ministro respondeu, em Junho, a um requerimento do PCP sobre o assunto, mas que esclareceu pouco. “As questões mantêm-se. Defendemos que não deve ser um único hospital a ter o monopólio no SNS destas cirurgias, porque estamos a falar de procedimentos de saúde como quaisquer outros” e o fim das listas de espera.

A URGUS faz saber que neste momento tem “seis utentes com processo concluído a aguardar o início das cirurgias, mas dentro dos tempos clinicamente aceitáveis”.

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