Quase 300 pessoas mudaram de sexo no registo civil

É conhecida por “Lei da Identidade de Género”. Desde que entrou em vigor, em 2011, permitiu que 287 pessoas transexuais alterassem os seus documentos, nome e sexo. Em 2015 registou-se um pico: 70 processos com luz verde. Associação Acção Pela Identidade aponta falhas e pede mudanças.

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Ilustração de Gisberta, concebida pela Acção pela Identidade DR

O velho registo de nascimento destas pessoas passou à história. No novo, têm um nome e um sexo diferentes do que lhes foi atribuído à nascença. Um total de 287 portugueses conseguiu mudar os seus documentos de identificação desde 2011: no ano passado foram mais do que nos últimos anos, 70 — “28 mudanças para sexo feminino e 42 para sexo masculino”, faz saber o Ministério da Justiça.

Estamos a falar de pessoas que, tendo ou não iniciado um processo de tratamento hormonal e/ou cirurgias de reatribuição sexual, foram reconhecidas oficialmente como tendo um género distinto daquele com que começaram por ser identificadas à nascença.

A lei exige, para alterar os documentos de identificação, a apresentação, nas conservatórias, de um “diagnóstico de perturbação de identidade de género, também designada como transexualidade” (in artigo 3.º). Mas há quem ache que essa exigência não faz qualquer sentido. Que devia bastar, para uma mudança de sexo no registo civil, a vontade de quem requer a mudança, como acontece já noutros países, afirma Júlia Mendes Pereira, da direcção da Acção pela Identidade — API. Diz que “a lei portuguesa está ultrapassada”, aliás, “que está a falhar”. Mas já vamos aos argumentos da activista.

Os números fornecidos pelo Ministério da Justiça, que tutela o Instituto dos Registos e Notariado, são estes: 79 “mudanças de sexo” em 2011, o primeiro de vigência da nova lei; 44 em 2012; 49 em 2013; 45 em 2014 e... 70 em 2015.

Primeira pergunta: o que se passou em 2015 que justifique o salto contabilizado?

Visibilidade “trans”
“Estamos a falar de processos demorados, as pessoas não decidiram assumir a sua identidade de género em 2015”, começa por dizer Carla Moleiro, investigadora do Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-IUL, responsável por um projecto, financiado pelo Programa EEA Grants através da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, que está, precisamente, a avaliar o impacto e a aplicação da Lei n.º 7/2011 — na altura considerada bastante inovadora a nível europeu.

O tal diagnóstico exigido aos requerentes leva tempo — pode levar menos se o interessado quiser e tiver meios para recorrer a serviços de saúde privados, afirmam Carla Moleiro e Júlia Pereira.

Esta razão — o tempo que o diagnóstico de transexualidade leva — pode ajudar a explicar que alguns processos de 2012, ou 2013 ou 2014 se tenham acumulado, tendo sido aprovados em 2015.

“Agora é um facto que há uma crescente visibilidade das questões ‘trans’, quer ao nível nacional quer internacional”, prossegue a docente de Psicologia e investigadora no Centro de Investigação e Intervenção Social do IUL.

“Várias séries de televisão têm dado relevo a personagens ‘trans’; filmes, como A Rapariga Dinamarquesa [ainda nas salas de cinema portuguesas], também; e muitas pessoas em contexto nacional e internacional deram a cara por estas questões, como Caitlyn Jenner”, continua. Bruce Jenner — já agora recorde-se rapidamente a sua história —, ex-atleta e estrela de séries e reality shows passou, no ano passado, a ser oficialmente Caitlyn Jenner após um processo de tratamentos e cirurgias tendo em vista a reatribuição do sexo feminino. Caitlyn apareceu com a sua nova imagem na capa da revista Vanity Fair de Julho.

“Este tipo de visibilidade pode levar a que as pessoas tenham mais à vontade para assumir a sua identidade de género e as dificuldades inerentes quer ao processo de fazer o coming out pessoal e social, quer ao processo clínico e ao reconhecimento legal”, diz a investigadora. E os números do Ministério da Justiça podem começar, de algum modo, a reflectir isso.

Há ainda outro facto a ter em conta: apesar de ter quase cinco anos, a “Lei da Identidade de Género” ainda não é do conhecimento de todas as pessoas. “Muitas pessoas ‘trans’ ainda não sabem que direitos têm, a quem se dirigir” mas, evidentemente, à medida que os anos vão passando a lei vai sendo mais conhecida.

Com filhos, sem filhos
Até 2011, os portugueses transexuais tinham de recorrer aos tribunais para exigir a alteração do seu nome e sexo e esperar pela decisão de um juiz. Desde Março de 2011, os passos são estes: ter 18 anos; fazer um requerimento numa conservatória; pagar 200 euros de emolumentos; e apresentar “um relatório que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género”, feito por “uma equipa multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro”.

Os dados preliminares da investigação que Carla Moleiro está a desenvolver, com base em questionários e entrevistas a transexuais e a pessoal clínico, mostram isto: “Existe uma grande diversidade de experiências no acesso à lei. Há pessoas cujo processo decorre de uma forma relativamente rápida — sobretudo as que recorrem aos serviços de saúde privados e não têm de estar em listas de espera para uma avaliação que permita iniciar o pedido no registo. E há pessoas que têm enfrentado diversas dificuldades: seja na obtenção do relatório com o diagnóstico, por questões variadas, relacionadas com o diagnóstico, ou com as equipas envolvidas nesses diagnósticos; seja por estarem no estrangeiro e fazerem os pedidos com base em relatórios de médicos estrangeiros.”

De resto, explica, apesar da lei ter sido criada, "o investimento em recursos clínicos e na formação específica de médicos e médicas, psicólogos e psicólogas, neste domínio, continuam a ser muito reduzidos".

Carla Moleiro nota contudo que independentemente das resistências que venham a ser identificadas — as conclusões do seu trabalho deverão ser apresentadas em Abril — a lei de 2011 teve um “impacto muito positivo na qualidade de vida das pessoas transexuais e na sua integração efectiva em sociedade, sempre que essas pessoas conseguiram o reconhecimento da sua identidade de género”. As implicações são muitas, comece-se pelo mais básico: imagine-se o que alguém sentir que não é outra coisa que não Maria, apresentar-se ao mundo como Maria, e numa repartição pública, numa entrevista de emprego, numa escola, num consultório ter de mostrar um cartão de cidadão onde o nome que aparece é José.

E há muitas pessoas a quem seja recusado o reconhecimento da sua identidade de género? “Não existem muitas”, diz Carla Moleiro. “Existem, sim, pessoas com processos mais demorados. Algumas são muito jovens, vivem em centros urbanos e têm famílias com grande abertura. Outras vivem no interior do país, ou já iniciaram estes processos aos 40 ou 50 anos, já são casados ou casadas ou com filhos. Há dificuldades que decorrem da experiência das próprias pessoas. Pelas entrevistas que fiz, inclusivamente a profissionais de saúde, presumo que nos dados fornecidos [ao PÚBLICO] pelo Ministério da Justiça há pessoas jovens e mais velhas, casadas e solteiras, e, inclusivamente, pessoas com filhos.”

Lobby médico”
No site do Instituto dos Registos e Notariado há uma lista de “clínicos habilitados a assinar relatórios” que comprovem os diagnósticos de perturbação de identidade de género, da autoria da Ordem dos Médicos, como se explica no próprio site. A existência de uma lista de médicos “habilitados” não está contudo prevista na lei, nota Júlia Pereira, e acaba por trazer problemas: relatórios de médicos estrangeiros, por exemplo, acabam por não ser aceites nas conservatórias (quando a lei prevê que possam ser); e pessoas transexuais que querem acelerar o processo “acabam por procurar estes médicos, desta lista, que as recebem nos seus consultórios privados, cobram e fazem os relatórios”, o que a activista não acha justo. “Isto acabou por alimentar um lobby médico que tem de começar a ser denunciado”, diz.

A API reivindica assim a alteração à lei de 2011, “de forma a remover a obrigatoriedade de as pessoas ‘trans’ serem diagnosticadas com ‘perturbação de identidade de género’”.

A lei vai fazer cinco anos, prossegue Júlia Pereira. Depois de ter sido aprovada, outras surgiram na Argentina (2012) e em Malta (2015), por exemplo, onde “está de facto contemplado o direito à autodeterminação das pessoas ‘trans’” — ou seja, a ideia de que ninguém, além dos próprios, nem mesmo um médico, sabe melhor qual o género de cada um. “Nesse sentido vai também o Conselho da Europa quando em 2015 apelou aos Estados-membros para terem procedimentos jurídicos que dispensem diagnósticos de saúde mental.”

A API reivindica ainda que se facilite “os procedimentos para as pessoas ‘trans’ e intersexo que vivem no estrangeiro, permitindo que os processos sejam apresentados e decididos junto das embaixadas e postos consulares”.

No ano em que se assinala uma década sobre a morte de Gisberta, uma mulher “trans” assassinada por um grupo de rapazes menores de idade, no Porto, a associação de Júlia Pereira prepara um conjunto de iniciativas para assinalar o que designa como #AnoGisberta, com debates, exposições e distribuição de cartazes (com a imagem de Gisberta, concebida para a ocasião, que ilustra este artigo). “A Lei da Identidade de Género só foi possível por causa do ‘caso Gisberta’, que acordou as pessoas para a situação das pessoas ‘trans’. Mas até que ponto está garantido que as Gisbertas deste país conseguiriam beneficiar desta lei da identidade de género? – é a provocação que faço.”

A activista garante que “há muita gente" que, apesar de viver 20 ou 30 anos de acordo com o género que é o seu, mas não aquele que lhe foi atribuído à nascença, "se recusa a submeter-se à humilhação de requerer uma avaliação de médicos para alterar os seus documentos”. 

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