Por vezes só se denunciam os abusos quando há uma ruptura familiar

A maioria das situações de abuso sexual de crianças ocorre no círculo de amigos da família, ou dentro dela, diz o procurador da República Rui do Carmo. “Gera-se uma teia” que atrasa a denúncia e dificulta a obtenção de prova. “A maior disponibilidade das pessoas para denunciar ainda tem hesitações."

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Ao longo dos anos, com a maior atenção na investigação e uma maior predisposição da sociedade para denunciar, a situação tem melhorado?
Sim, manifestamente. Com o tempo, as coisas têm melhorado, embora mais devagar do que gostaríamos. A sensibilização das pessoas e particularmente o conhecimento nesta área são tremendamente maiores.

Quem são as pessoas ou entidades que mais frequentemente denunciam?
Em muitos casos, as crianças verbalizam o facto na escola, através do professor em quem têm mais confiança ou do psicólogo. Algumas denúncias aparecem através das comissões de protecção [de crianças e jovens, CPCJ], porque, por vezes, quando existem situações de perigo, acabam por ser detectadas situações de abusos. Também surgem denúncias [das instituições] da saúde.

E os familiares, também denunciam?
A maior disponibilidade das pessoas para denunciarem ainda tem hesitações e as pessoas por vezes só denunciam quando ocorre uma situação de ruptura familiar. Enquanto esta situação de crise na família não existe, há um pacto de silêncio. Por vezes, as pessoas sabem que a situação existe e vão procurando resolvê-la, vão tentando, até ao limite, que a situação seja ultrapassada sem a intromissão das entidades externas. E quando isso já não é possível, os factos acabam por ser denunciados. Grande parte dos abusos ocorre dentro das famílias. Isso gera uma teia, cria uma dificuldade ainda maior na denúncia e, por vezes, a ilusão de que o problema vai ser ultrapassado, de que se tratou de uma situação circunstancial. Nesses casos, só mais tarde surge a denúncia que já pode ser tardia. E, sendo tardia, as provas podem ser muito difíceis [de obter].

Também se coloca a questão da credibilidade da vítima ou da veracidade do seu depoimento?
É uma questão que também se pode colocar, sim. Sobre isso, há mitos para todos os gostos. Aquilo que eu aprendi com os psicólogos é: nós temos de partir para a inquirição de uma criança com uma ideia inicial, de que a criança é tão capaz como os adultos de prestar um depoimento verdadeiro. [Fá-lo] com as suas características próprias, mas a criança é tão capaz como um adulto de o fazer. A verbalização de uma situação de abusos por parte de uma criança, em princípio, é verdadeira. Mas é preciso fazer investigação, porque pode não ser.

Pode acontecer se a criança for manipulada, por exemplo quando há falsas denúncias em processos de regulação do poder parental?
Eu não diria que acontece muito, mas acontece. E passou a ser mais notório depois do processo Casa Pia. Mas é preciso ter em conta uma coisa: a criança, se lhe for encomendado um determinado relato, atendendo ao seu nível de desenvolvimento e à sua experiência, não vai conseguir sair daquele relato. Será facilmente verificável que se trata de um relato construído. Ela não vai conseguir responder a perguntas laterais, por exemplo. Não tem vivência pessoal que lhe permita responder ao lado ou imaginar o que é aquela realidade se não a viveu.

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