Semipresidencialismo de assembleia

Não assiste razão aos que entendem que o sistema político passou a ser parlamentarista, dado que se assistiu, afinal, ao regresso a um ciclo semipresidencialista de preponderância parlamentar.

Terá o sistema político português transitado, como alguns politólogos políticos alvitram, do semipresidencialismo para o parlamentarismo, na sequência das eleições de 4 de outubro?

Numa primeira leitura, dir-se-ia que sim: detetam-se traços do parlamentarismo num cenário em que o Chefe de Estado, inibido do poder de dissolução da Assembleia da República, é constrangido a nomear um Governo do segundo partido mais votado, sustentado num acordo parlamentar maioritário com todos os partidos à sua esquerda. Já uma leitura mais rigorosa permite constatar que, mesmo assim, a estrutura do sistema não mudou.

Como definir um sistema político

A definição da identidade de um sistema político, como modelo de estruturação e de relacionamento dos órgãos de soberania de um Estado, tem como ponto de partida a Constituição. É ela, como estatuto jurídico do político, e não tanto a prática institucional, quem define a base do modelo de governação. Ora, no presente ciclo político, encontram-se reunidas na Constituição portuguesa as quatro características típicas do semipresidencialismo: i) Diarquia entre o Presidente e o Primeiro-Ministro; ii) Presidente eleito por sufrágio universal; iii) Dupla responsabilidade do Governo, perante o Presidente e perante o Parlamento; iv) Poder de dissolução do Parlamento pelo Presidente da República.

Dir-se-ia que não estaria hoje verificada a quarta característica exposta, pois o Presidente está inibido de dissolver o Parlamento até abril. Essa inibição é, todavia, excecional, não podendo um sistema ser definido na base de realidades conjunturais, mas sim de atributos permanentes. A Constituição estabelece um “defeso” de 6 meses contra o poder de dissolução no termo do mandato do Presidente e um período de outros 6, logo após as eleições parlamentares, tendo-se verificado fortuitamente uma atípica conjugação “astral” dos dois períodos de defeso, a qual conduziu a um maior protagonismo do Parlamento e ao enfraquecimento do poder “moderador” do Presidente. Contudo, findo esse tempo político, o Chefe de Estado recuperará a faculdade de dissolução. Sem negar o relevante impacto político gerado, em concreto, pelo reforço do poder do Parlamento durante este anómalo período de defeso (o qual foi fundamental para a viabilização do presente Governo), será anacrónico afirmar que o sistema se terá transmutado magicamente em parlamentarista durante quase nove meses, até que soem as doze badaladas do dia 4 de abril (onde a carruagem se transformará em abóbora e os cavalos em ratos), regressando então o semipresidencialismo.

Um semipresidencialismo de “geometria variável”

Se a Constituição é a pedra angular da identidade de um sistema político, este pode assumir diferentes variantes em razão do órgão dominante em cada ciclo político. Essas variantes são condicionadas politicamente, quer por fatores estáveis (as convenções geradas pela prática política) quer por fatores conjunturais (a composição maioritária do Parlamento). Por exemplo, o semipresidencialismo francês assume um pendor presidencial liderante quando existe uma identidade política entre Presidente, Governo e maioria parlamentar e um pendor presidencial “moderador” em cenários de “coabitação” do Presidente com uma maioria parlamentar adversa. Em Portugal o perfil do semipresidencialismo sempre se foi alterando, em razão de três fatores conjunturais: a existência de cenários de coabitação ou de confluência entre o Presidente e a maioria parlamentar; o perfil psicológico mais ativista, arbitral ou notarial do Presidente; e, como fator determinante, a existência ou não de uma maioria parlamentar absoluta e homogénea que sustente o Governo. Assim, a título de exemplo, o semipresidencialismo português experimentou: i) fases de pendor parlamentar durante governos minoritários (o de Cavaco Silva em 1985, o de Guterres em 1995 e o de José Sócrates, em 2009); ii) Fases de equilíbrio oscilante entre Presidente e Parlamento (caso do ciclo eanista de 1976 a 1983, com governos socialistas, da Aliança Democrática e de iniciativa presidencial; iii) E fases primo-ministeriais com preponderância do Governo, sempre que este se estribou numa maioria parlamentar absoluta, obediente e homogénea (os ciclos cavaquistas de 1987 e 1991, o consulado de Sócrates de 2005 e, mitigadamente, os governos de Durão Barroso e Passos Coelho). O papel do Presidente, nesta triangulação de poderes, nunca configurou (ressalvado o ensaio falhado do eanismo) um protagonismo liderante à francesa, operando antes como contrapoder (Soares), parceiro institucional (Sampaio e Cavaco Silva em ciclos de confluência) e regulador crítico (Sampaio e Cavaco em coabitação).

Em conclusão, um Governo minoritário como o atual não poderia deixar de catalisar, logicamente, um ciclo de preponderância parlamentar do semipresidencialismo, dado que o Executivo se sustenta, quase exclusivamente, na confiança ou na tolerância do Parlamento, sendo neste que o mesmo Governo concerta a sua sobrevivência e a das suas políticas.

Um semipresidencialismo com pendor parlamentar “governante”?

Não assiste, assim, razão aos que entendem que o sistema político passou a ser parlamentarista, dado que se assistiu, afinal, ao regresso a um ciclo semipresidencialista de preponderância parlamentar. Dito isto, haverá contudo que reconhecer que esse viés parlamentar que defluiu do sufrágio de 4 de outubro tem características diferentes dos precedentes, já que vingou um “pendor parlamentar de assembleia”.

Em primeiro lugar, tendo o atual Governo nascido numa conjuntura de limitação dos poderes presidenciais, a sua formação implicou a revogação de uma convenção tácita de décadas gerada pela prática política, segundo a qual, os partidos do “arco democrático” se entenderiam de modo a que a os governos saíssem sempre do seu seio e não de partidos marxistas, como o PCP e o BE, entendendo-se que, quem ganhasse a eleição formaria governo, mesmo que minoritário. Esta quebra, que envolveu pela primeira vez a reprovação parlamentar de um programa de governo saído de eleições, passou a abrir a outros protagonistas minoritários dos extremos políticos as portas da governação, aumentando o seu peso decisório no Parlamento. No futuro, o centro-direita só governará se obtiver maioria absoluta na Assembleia, a qual reforçará o seu peso.

Em segundo lugar, pela primeira vez em 40 anos, o líder do segundo partido votado foi indigitado para formar um governo minoritário por força de um acordo de incidência parlamentar com partidos menores, o qual permitiu a sua viabilização e formas permanentes de negociação parlamentar das suas políticas com aqueles.

Em terceiro lugar, a fórmula de governo adotada tem condições políticas para subsistir no curto-médio prazo, em tudo o que dependa da Chefia do Estado, ante a perspetiva da eleição de um Presidente de difuso perfil compromissório (Marcelo Rebelo de Sousa) ou mesmo colaborante (Sampaio da Nóvoa ou Belém Roseira). A cair, o Governo cairá no Parlamento por desentendimento entre parceiros, como sugeriu o próprio Primeiro-Ministro.

Assim, a novidade deste estádio do sistema semipresidencialista é o seu perfil de “parlamentarismo de assembleia”, tendo em conta que o PS terá de negociar a subsistência do Governo 365 dias por ano com cada um dos seus parceiros e buscar, quando não obtiver acordo destes, a abstenção pontual dos partidos da oposição ou das suas franjas regionais. Semelhantes “trabalhos de Houdini” colocam o epicentro do poder no Parlamento, onde os referidos acordos terão se ser pactuados para cada política. Em tempos de alteração de liderança em alguns partidos da oposição, desponta a dúvida sobre se a complexa negociação parlamentar realizada permanentemente em vários tabuleiros políticos segregará, ou não, um “parlamentarismo governante”, que apenas se poderia diferenciar do da 1.ª República, pela plenitude da ação arbitral e moderadora do Presidente da República que retornará em abril e que consiste, precisamente, naquele traço que permite conservar este “sistema de geometria variável” na órbita do semipresidencialismo.

Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, coordenador científico do Centro de Investigação de Direito Público

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