Aos 69 anos, eis o David Bowie inspirado pelo jazz

Em pleno dia de aniversário, David Bowie renasce com Blackstar, o álbum em que parte à procura de outros caminhos.

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O saxofone é uma paixão antiga de David Bowie. Na juventude, chegou a declarar que não sabia se queria ser cantor de rock ou John Coltrane. Acabou por transformar-se numa das maiores celebridades de sempre da cultura popular e o jazz foi esquecido. Pelo menos parcialmente. Esta sexta-feira, no dia em que completa 69 anos, lança o seu 25.º álbum de originais, Blackstar, e o que se ouve por lá é muito marcado pelo jazz.

Não é um disco de jazz. Não é isso. Como aqui reflectimos em primeira instância sobre o disco, há cerca de duas semanas, é obra ousada, inquietante e densa, com músicos de jazz a recriarem formas disformes com algum rock lá dentro, sem que Bowie deixe de ser ele próprio, num disco em que somos confrontados com novos cenários, mas onde ainda assim existe um sentido de contínuo e de memória. Se The Next Day – o álbum que lançou de surpresa em 2013, dez anos depois de não dar notícias – era um documento de afirmação rock, o novo álbum encontra o seu caminho no jazz. É nitidamente o disco de alguém que foi procurar inspiração noutros impulsos, para assim afirmar uma nova vitalidade.

Os primeiros indícios da nova direcção foram dados no final de 2014, quando deu a conhecer a canção Sue (Or in a season of crime), que contou com a colaboração da Maria Schneider Orchestra. Os resultados dessa experiência convenceram Bowie; quis continuar a trabalhar com Schneider, o que não veio a acontecer porque esta estava focada na gravação do seu próprio álbum. Foi aí que surgiu o saxofonista Donny McCaslin, 49 anos, improvisador nato e figura da vanguarda jazzística de Nova Iorque nos últimos anos, a partir de sugestão da própria Schneider. O cantor acabou por assistir a uma actuação ao vivo do músico e do seu quarteto, desencadeando-se a partir daí uma vibrante colaboração.

Foi com o meio-irmão Terry Burns, já falecido, que Bowie entrou no universo do jazz, ouvindo Coltrane, Eric Dolphy, Stan Kenton, Chet Baker ou Gil Evans, e praticando saxofone. Depois, ao longo dos anos, encetou algumas colaborações com músicos de jazz, como o pianista Mike Garson, que integrou várias das suas formações em duas décadas, e foi compondo temas em que o saxofone tinha uma presença intensa – oiça-se Subterraneans, do álbum Low (1977), com Brian Eno.

Mas não só. Nos arranjos de Changes (1971), nas digressões de Alladin Sane (1973), em Black Tie White Noise (1993) ou num tema como South horizon (1993), com o próprio Bowie no saxofone, essa ligação ao jazz está bem expressa. Mas nunca como agora se tornou tão manifesta.

Não foi assim tão diferente o território musical onde Donny McCaslin, 49 anos, cresceu, ouvindo Charlie Parker ou Charlie Mingus, e também David Bowie, o que fez dele o parceiro ideal para explorarem novos territórios. “Adoro o seu trabalho e quando ele enviou os primeiros esboços das canções, criadas no seu estúdio caseiro, fiquei maravilhado”, afirmou recentemente. “Eram canções tremendas e isso era patente naquelas demos, que depois nos limitámos a esculpir, sem grandes desvios.”

Ao lado de McCaslin esteve o seu quarteto (Jason Lindner nas teclas, Tim Lefebvre no baixo eléctrico e Mark Guiliana na bateria), conhecido por álbuns como Casting For Gravity (2012) ou Fast Future (2014). O baterista Guiliana foi um dos que ficaram surpresos com a forma de Bowie: “Gravou tudo em conjunto connosco ao vivo, na mesma sala, o que foi incrivelmente inspirador; por vezes só tínhamos de o seguir.” Apenas uma canção não foi criada a partir das gravações caseiras iniciais do próprio cantor, a balada Dollar days. Ao que parece, Bowie tocou-a na sua guitarra acústica e os músicos aprenderam-na assim, de ouvido.

Uma nova fase
No novo álbum existem duas canções que já eram conhecidas – ‘Tis a pity she was a whore e Sue (or in a season of crime) – mas que surgem agora muito transfiguradas. Há uma outra que constituiu a senha de identidade do musical Lazarus, em cena na Broadway. E duas outras canções – as que encerram o disco – acabam por nos devolver luz, ainda assim uma luminosidade melancólica, depois do cortejo de ambientes contorcidos e letras ocupadas por inúmeros narradores e personagens.

Dir-se-ia uma obra mais unificada pelo som do que pelas palavras. Com uma presença persistente e essencial, para além, claro, está da voz expressiva de Bowie: o saxofone. Os solos de saxofone, quando encaixados em canções de estrutura pop, muitas vezes soam melosos ou desenquadrados. Em Blackstar não. É seco e íntegro, por vezes, e noutros momentos parece gozar do lastro da eternidade. É isso que acontece em Dollar days e na meditação final, com I can’t give everything away.

São as canções mais clássicas do disco, como se Bowie quisesse mostrar que, apesar das suas tendências exploratórias, não perdeu a capacidade para nos devolver momentos de calor e intimidade vocal. E é verdade, essas capacidades estão ilesas. Como intacto está o instinto para maravilhar. Blackstar parece o início de uma nova fase para ele. Aos 69 anos.

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