Tanto mau costume, e em tempo avesso

A turbulência que campeia pela Europa é o prenúncio das revoltas que estão por eclodir.

Era assim – “(…) tanto mau costume, e em tempo avesso” – que o poeta André Falcão de Resende descrevia a época desvairada que tinha produzido, apesar de tudo, um génio como o seu amigo Luís de Camões. Não devemos pois ficar demasiado desassossegados com as crises e malfeitorias que agora vemos, porque talvez não sejam tão excepcionais na história como isso (o século XVI também não foi caso único). Preocupemo-nos sim com a amplitude e a dimensão da desgraça e da criminalidade que grassa pela Europa. Não só não aprendemos com a história, como também os sistemas em que vivemos se vão dotando de uma perversidade crescente, que só diminui quando colapsam na fornalha da próxima revolução.

O conceito moderno de “cidadão” apareceu com a revolução francesa. A soberania passou a residir no povo e não num monarca. O que havia antes eram “súbditos” e “servos”. É a ideia de soberania popular que define politicamente a esquerda desde o seu nascimento. Foi em França, igualmente no século das “luzes”, que a frase “laissez faire, laissez passer” foi inventada, promovendo um modelo “liberal” para a estrutura e funções da actividade económica. O capitalismo absorveu bem o choque da revolução e adaptou-se com proficiência às novas condições de vida em sociedade. De facto, transformou-se e robusteceu-se. Como explica Karl Polanyi em “A Grande Transformação”, a economia, que desde sempre esteve imersa na rede das relações sociais, passou a partir de então a comandar a vida social pelo que as relações sociais passaram a estar incorporadas no sistema económico.

Apoiado em regimes parlamentares, o capitalismo foi-se apoderando habilmente do sistema-mundo económico e portanto de toda a sociedade. Conseguiu com êxito durante os últimos cento e cinquenta anos compatibilizar a igualdade política (indispensável para legitimar a liquidação dos privilégios senhoriais bem como a abolição da escravatura) com a desigualdade económica – inerente ao modo de acumulação capitalista. As constituições dos nossos Estados-nação defendem tanto os direitos do cidadão como os da propriedade. Nada disto foi obra do acaso.

Claro que apenas foi possível gerir estas práticas antagónicas porque houve um sustentado crescimento da riqueza gerada. A expansão colonial europeia ajudou. A estabilidade dos sistemas nacionais repousou ainda sobre a existência de uma classe média em alargamento, apta a alternar o seu voto entre dois grandes partidos do centro político, um mais à esquerda, outro mais à direita, consoante as vicissitudes das conjunturas interna e externa.

Mas nem tudo foram rosas neste último século e meio. Os movimentos reivindicativos de melhores condições de vida para as populações e para a generalidade dos trabalhadores foram uma constante, embora com várias intensidades e calibres. Surgiram várias esquerdas, herdeiras de experiências históricas específicas; travaram-se duas guerras terríveis em solo europeu; ocorreram revoluções na Rússia e na China; as nações europeias foram forçadas a descolonizar; o centro do sistema-mundo moveu-se do Reino Unido para os Estados Unidos da América; o capitalismo financeiro tomou as rédeas do Estado e lançou-se na globalização; as desigualdades não pararam de aumentar.

As crises que tiveram origem nos Estados Unidos e assolaram a Europa neste século são o resultado das disfunções do capitalismo financeiro “informacional” (e da sua ânsia de acumulação infinita de capital) como ordenador do mundo. A desagregação dos poderes do Estado favorecida pela globalização facilitou a mescla do trigo com o joio. As consequências estão à vista: escândalos financeiros em catadupa; paraísos fiscais que servem para branquear operações fraudulentas; administrações nacionais infiltradas pela corrupção. Basta, estamos fartos!

No meio da desconfiança generalizada que daqui resultou só por milagre o produto mundial poderia voltar a crescer tal como no século XX. As deslocalizações que beneficiaram o capital financeiro destruíram ao mesmo tempo muito do capital humano do ocidente. O nível de desemprego aumentou. E a ideologia neoliberal da competitividade e do crescimento é claramente incapaz de reduzir o desemprego a curto prazo.

Daí a indignação contra as políticas de austeridade: porquê reduzir o Estado-providência precisamente quando a situação económica geral piorou? E por que razão só os mais ricos ficam mais ricos? Quando parte da população cruza o limiar da pobreza, uma considerável fracção da classe média é arrastada para níveis próximos dela. Perde-se assim o estabilizador do regime – a maioria que disputava o “centro” – o que faz com o que o sistema político se torne caótico. Num recente artigo (no site do Centro Fernand Braudel) Immanuel Wallerstein discorre sobre as consequências desta deriva para os sistemas eleitorais de hoje.

A turbulência que campeia pela Europa é o prenúncio das revoltas que estão por eclodir. É tempo de avisarmos os nossos concidadãos, tal como Thomas Mann, em “Aviso à Europa” (1937):

“Em todo o humanismo há um elemento de fraqueza que vem da sua repugnância por qualquer fanatismo, da sua tolerância, e da sua inclinação para um cepticismo indulgente, numa palavra, da sua bondade natural. Mas isso pode, em certas circunstâncias, tornar-se fatal. Aquilo de que nós teríamos necessidade, hoje, seria de um humanismo militante, um humanismo que afirmasse a sua virilidade e que estivesse convencido de que os princípios da liberdade, da tolerância e do livre arbítrio não têm o direito de se deixar explorar pelo fanatismo sem vergonha dos seus inimigos.”

De todos os seus inimigos, os de dentro e os de fora. O tempo está avesso mas é o nosso. É neste tempo que se desenha o futuro. Bom Ano Novo!

Professor universitário, físico

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