Maior estudo em sobreviventes do ébola identifica principais problemas de saúde

Desde Novembro que já não há novos casos de pessoas infectadas com o vírus do ébola na África Ocidental. Mas no rescaldo desta terrível epidemia é preciso um cuidado redobrado com os sobreviventes para evitar novos surtos, avisa a OMS.

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O vírus do ébola foi primeiro identificado em 1976 CDC
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O olho direito de Ian Crozier não contém o vírus do ébola, enquanto o seu olho esquerdo contém o vírus Emory Eye Center

O jornal norte-americano The New York Times contou a história em Maio último: Ian Crozier, um médico dos Estados Unidos que contraiu o vírus do ébola na Serra Leoa, e que sobreviveu à doença, acabou por passar algumas semanas de verdadeira aflição quando quase perdeu a visão do olho esquerdo. O oftalmologista que o seguiu já nos EUA descobriu, com surpresa, que ele ainda tinha vírus dentro do olho, causando uma inflamação que mudou a cor da pupila. Felizmente, a inflamação foi debelada e o olho voltou à sua cor normal.

Mas o susto que Ian Crozier apanhou não é um caso isolado. Muitas pessoas que adoeceram com o vírus do ébola durante a epidemia que, durante 2014 e 2015, afectou a África Ocidental, tiveram problemas ligados à doença como infecções nos olhos, dores nas articulações e problemas de audições, conclui o mais completo estudo feito até agora e que foi publicado na última edição da revista científica Lancet Infectious Disease.

O que os investigadores estão a concluir é que deverão existir “santuários” no corpo humano onde o vírus consegue permanecer meses depois de a infecção ter sido debelada na corrente sanguínea pelo sistema imunitário. Mas o vírus mantém-se seguro em lugares como o interior do olho ou nos testículos, órgãos que têm barreiras para o sistema imunitário, o que traz riscos.

Embora o vírus não possa saltar do interior do olho para outra pessoa, o esperma de um homem que teve ébola pode ainda conter vírus, e infectar pessoas com quem tenha relações sexuais. Na semana passada, um comunicado da Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgado após a oitava reunião do comité de emergência para o ébola, alertava para estas questões.

“Entre Março e Novembro de 2015, houve dez novos surtos que resultaram da reintrodução do vírus do ébola na população que estava em convalescença”, lê-se no comunicado. “O surto mais recente ocorreu na Libéria, com três casos identificados entre 19 e 20 de Novembro de 2015.”

Estes foram os últimos casos de ébola da pior epidemia de sempre deste vírus. A 13 de Dezembro de 2015, a OMS contava 11.315 mortos entre as 28.640 pessoas infectadas pelo vírus, a enorme maioria na Guiné-Conacri, na Libéria e na Serra Leoa.

O vírus do ébola causa dores de cabeça, nas articulações, febres altas e hemorragias. Tem uma taxa de mortalidade que pode atingir os 60%. A sua origem é um mistério, pensa-se que certas espécies de morcegos frugívoros nas florestas africanas sejam o reservatório natural do vírus. A primeira vez que surgiu um surto foi em 1976, no Norte do antigo Zaire, hoje República Democrática do Congo. Desde então, outros surtos foram aparecendo em África.

Mas a epidemia que começou em Dezembro de 2013, no Sul da Guiné-Conacri, e se espalhou no ano seguinte para a Libéria e a Serra Leoa, tomou uma dimensão sem precedentes. Vários factores contribuíram para o fenómeno como a inexperiência daqueles países em relação ao ébola, a pobreza e falta de sistemas de saúde sólidos, hábitos culturais, a demografia, a capacidade moderna de mobilidade das populações, que permitiu ao vírus chegar rapidamente aos grandes centros urbanos, e o atraso da resposta internacional.

A OMS foi adiando a decisão de intervir com força até 8 de Agosto de 2014, quando declarou que o surto era uma “emergência de saúde pública de âmbito internacional”. Só nessa semana surgiram 68 novos casos e houve 29 mortes, totalizando uma estimativa de 1779 pessoas infectadas e 961 mortos, com o vírus já a atingir a Nigéria. A epidemia estava fora de controlo e ainda iria afectar os Estados Unidos, a Espanha, o Mali, entre outros países, tornando-se um dos grandes acontecimentos de 2014.

Só no início de 2015 é que surgiram os primeiros sinais reais de que a epidemia estava a ser contida, demonstrando que o financiamento e os recursos humanos que foram alocados aos três países eram realmente fulcrais e estavam finalmente a ajudar a inverter a situação. Entretanto, equipas de cientistas e empresas farmacêuticas reagiram à epidemia. No final de Julho, a OMS revelou que a vacina contra o ébola VSV-ZEBOV, das empresas farmacêuticas Merck e NewLink Genetics, era 100% eficaz.

Agora, os três países que estiveram no centro da crise contam os dias para se poder declarar o fim da epidemia. Se tudo correr bem, em 2016 o mundo pode fechar este capítulo mundial na luta contra as doenças. Para já, as autoridades de saúde estão preocupadas com os sobreviventes. “Os governos da Libéria e da Serra Leoa (...) implementaram um sistema voluntário de análise do sémen e de aconselhamento a homens que sobreviveram à doença para os ajudar a compreenderem o risco e tomarem as precauções necessárias em relação a contactos próximos”, relata o último relatório semanal da OMS, de 16 de Dezembro.

O artigo publicado na Lancet Infectious Disease reflecte a nova realidade destes países, que têm de lidar com milhares de sobreviventes da doença, uma novidade na história do ébola. A investigação teve como base de partida o trabalho de apoio médico feito na clínica EVD Survivor Clinic em Port Loko, na Serra Leoa, a apenas 45 quilómetros da capital Freetown.

Este centro não-governamental apoiou 603 sobreviventes da doença entre Março e Abril de 2015 que vivem no distrito de Port Loko. Destes, 277 tiveram complicações muito provavelmente devido à doença. Ao todo, 76% queixaram-se de dores nas articulações, 60% disseram ter problemas de visão, 18% tinham inflamações nos olhos e 24% sofreram problemas auditivos.

Segundo Sharmistha Mishra, coordenadora do trabalho e médica do Hospital de St. Michael, em Toronto, no Canadá, os “doentes com mais quantidade de vírus do ébola quando diagnosticados com a doença tinham uma inflamação maior nos olhos e tinham novos problemas de visão”, lê-se no comunicado da instituição. Para os autores do artigo, “estas descobertas enfatizam a importância do acompanhamento clínico de todos os doentes”. Algo que será um desafio num país como a Serra Leoa que tem apenas dois oftalmologistas inscritos no Programa Nacional de Saúde Oftalmológica. 

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