PSOE e Podemos em competição pela hegemonia da esquerda

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Quem vai liderar a área da esquerda? Os socialistas ou o Podemos, uma força anti-sistema que se candidata ao poder e que até hoje não se definiu, mantendo uma ambiguidade fundamental quer ideológica quer política? Esta interrogação tem consequências políticas.

Um facto que impressionou os analistas na noite eleitoral foi a confirmação da “remontada” do Podemos, anunciada pelas últimas sondagens. Os altos e baixos do partido de Pablo Iglesias foram objecto de muitas análises. Irrompeu nas europeias de 2014 de forma inesperada, com o desígnio de transformar a competição política numa luta entre os “de baixo” (a gente) e os “de cima” (a casta), num tom populista inspirado na América Latina.

Conseguiu algo de inédito: “abrir uma brecha no cartel político espanhol e romper o predomínio dos dois grandes partidos”, sublinhou o politólogo Pablo Simón. Em Janeiro de 2015, atingia o pico nas sondagens, com uma intenção de voto perto dos 25%. Em Outubro, retrocedia para os 15 por cento. Simón apontou várias razões para a quebra. “A primeira é a dificuldade de sustentar a médio prazo uma coligação muito heterogénea e que agrupava os descontentes com os partidos tradicionais desde o centro à extrema-esquerda.” Entretanto — segunda razão — irrompia outro partido novo, o Cidadãos, mais apto a exprimir o descontentamento do centro. O Podemos era um partido “camaleão”, assumindo várias cores ideológicas e dizendo aos vários eleitorados o que eles queriam ouvir. Nas regionais de Maio teve um bom resultado, graças à arte de fazer dinâmicas coligações, as “candidaturas de unidade popular” encabeçadas por independentes ligados a movimentos sociais, que lhe deram uma vitória em Barcelona e em Madrid (graças a um acordo com o PSOE).

Depois, perdendo o terreno no centro, recolocou-se à esquerda, em áspera luta com o PSOE e “canibalizando” o eleitorado da Esquerda Unida. Depois de uma fase de crispação a seguir à regionais, adoptou um tom “sereno e suave”. Distanciou-se do radicalismo do primeiro Syriza. Tentou captar o eleitorado do PSOE com o argumento de que a esquerda só chegaria ao poder se o Podemos fosse dominante.

O êxito de domingo deve-se a outro factor: em nome de uma “Espanha plurinacional”, apostou em coligações que canalizaram o voto nacionalista e que funcionaram excelentemente na Catalunha. no País Basco, em Navarra, na Galiza e na Comunidade Valenciana. O Podemos não apoia os nacionalismos. Serve-se deles. Não é partidário da independência da Catalunha mas defende “o direito de decidir” em referendo. Iglesias é pragmático.

Permanece a incógnita: atingiu o Podemos o limite da sua expansão ou exprime uma vaga de fundo de um populismo esquerdista? A resposta também depende do PSOE.

A erosão do PSOE
Ao obter o segundo lugar, em votos e mandatos, os socialistas afastaram as previsões mais negras. Mas os seus bastiões, como a Andaluzia ou a Extremadura, não chegaram para compensar as debilidades. O PSOE registou derrotas em série nas várias comunidades. O quarto lugar em Madrid é uma humilhação.

Anotou o politólogo Lluís Orriols que o PSOE ficou na posição paradoxal de também ser punido pela situação económica e pela gestão do PP. “Uma explicação possível é que os cidadãos considerem o bipartidarismo (e não apenas o PP) responsáveis pela situação do país.” Esta explicação não basta. O Podemos é mais valorado do que os socialistas nas políticas sociais — não nas económicas. Os socialistas têm outra desvantagem: são mais valorados do que o PP nas políticas sociais, mas menos em todos os outros temas. O PSOE sofre também da “fractura geracional”: se votassem apenas os maiores de 60 anos, o PP seria o vencedor absoluto; se só votassem os jovens, ganharia o Podemos (seguido do Cidadãos).

Os socialistas foram incapazes de resolver o problema da tenaz que os entalou entre o Podemos (à esquerda) e o Cidadãos (ao centro), tal como a sua dificuldade em equacionar a questão das nacionalidades lhes fez perder terreno.

O Podemos foi fundado em Janeiro de 2014. Por ironia, os socialistas tinham realizado dois meses antes, uma conferência sob o lema “O PSOE está de volta”. O partido tinha sofrido uma “sangria de um, dois, três, quatro milhões de eleitores...”, facto que atribuía às medidas de austeridade de José Luís Zapatero. A conferência foi uma “missa” para consumo interno e para celebrar uma “viragem à esquerda” num ambiente de “frente popular”. Resumia a resposta à crise económica em dois tópicos: a redução de impostos para os desfavorecidos e o seu aumento para “os que têm mais redimentos, rendas e partimónio.” Prometia revogar a legislação laboral de Rajoy e a integração dos direitos sociais na Constituição. A ironia é que o Podemos, ainda por fundar, poderia ter subscrito aquele programa.

Era um “plano de vacas gordas num tempo de vacas magras”, observou um politólogo. O problema do PSOE foi a falta de credibilidade: ninguém o levou a sério. O El País resumiu assim a conferência: “O PSOE está de volta. Quer dizer que durante um tempo foi embora, não estava. Perdeu a conexão com a sociedade, ou melhor, com as classes desfavorecidas que eles consideram a base do seu eleitorado.”

Devemos ter consciência de que estas eleições marcam o fim de uma era e uma mudança de ciclo mas não o fim do processo de transformação do sistema partidário nem da cultura política espanhola, que pode durar anos.

O que se passa não diz apenas respeito aos espanhóis. “Esta noite muda a história do nosso país e muda a história da Europa”, proclamou Iglesias. Aldo Cazzullo, editorialista e enviado do Corriere della Sera, anotou na sua crónica: “A Espanha era o bastião ocidental do ‘sistema alemão’, que já perdeu a Polónia, o seu bastião oriental. Os acordos esquerda-direita não fazem parte da cultura política espanhola. Mas esta noite mudou tudo.”

Por isso lhe importa saber quem será a esquerda em Espanha e o que vai fazer Sánchez nas próximas semanas.

 

 

 

 

 

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