Supremo dá razão ao Ministério Público no caso Miró

Supremo Tribunal Administrativo pede nova análise da providência cautelar que quer impedir saída das obras.

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Joana Marques Vidal, a procuradora-geral da República Miguel Manso

O Supremo Tribunal Administrativo revogou a decisão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul) e deu razão ao Ministério Público (MP), que quer impedir a saída de Portugal das 85 obras de Joan Miró através da abertura de um procedimento de inventariação e classificação da colecção. Foi em Fevereiro que o tribunal negou provimento ao recurso do MP, confirmando a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa que extinguia a providência cautelar interposta pelo MP. O Ministério Público recorreu para o Supremo, que verificou um erro de julgamento, decretando uma nova análise da providência.

É uma vitória para o Ministério Público, que iniciou esta luta jurídica e se tem batido contra a venda das obras, na posse do Estado desde a nacionalização do Banco Português de Negócios (BPN). Desde que o leilão desta colecção, na Christie’s de Londres, foi anunciado pelo Governo de Pedro Passos Coelho no final de 2013 que a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, assumiu como “obrigação” do MP a protecção das peças, defendendo não só a sua inventariação e classificação, bem como a manutenção do país. Ainda em Abril, quando foi anunciado o recurso do MP, Marques Vidal garantiu que existiam “factos e fundamento jurídico” para a luta pelas obras que pertencem à Parvalorem e à Parups, sociedades criadas para abater a dívida do BPN.

O Ministério Público recorreu então para o Supremo, depois de o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa ter extinguido “por inutilidade” a providência cautelar que queria obrigar todos os intervenientes no caso (Ministério das Finanças, secretário de Estado da Cultura, Direcção-Geral do Património Cultural, Parvalorem e Parups, e Christie’s) a não colocarem à venda a colecção, até que um processo de inventariação e classificação estivesse concluído.

O Supremo defende no acórdão, datado de 3 de Dezembro, que a acção interposta pelo Ministério Público não é inútil porque o processo ainda não acabou. Quando extinguiu a providência cautelar, o tribunal considerou que o pedido do MP não fazia sentido, uma vez que o leilão marcado para os dias 4 e 5 de Fevereiro não tinha acontecido, bem como nenhuma outra venda se concretizou mais tarde, acrescentando ainda o facto de ter sido aberto entretanto um procedimento de inventariação e classificação das obras – que acabou arquivado pela Direcção-Geral do Património, depois de as sociedades presididas por Francisco Nogueira Leite se terem oposto a este.

“Mas nenhum desses dados caracteriza a presente lide como supervenientemente inútil”, lê-se no acórdão. “A providência pedida pelo MP consiste na intimação dos requeridos a absterem-se de alienar determinadas obras do artista Joan Miró”, continua a argumentação dos juízes Carlos Luís Medeiros de Carvalho, Maria Benedita Malaquias Pires Urbano e Vítor Manuel Gonçalves Gomes, que defendem que o propósito do Ministério Público mantém-se: “Pois só não permaneceria se a alienação já estivesse feita ou fosse seguro que não era realizável.”

Isto é, para os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal, não é claro que por a venda das 85 obras ter sido cancelada, com a qual o Governo esperava arrecadar cerca de 35 milhões de euros, não venha ainda a acontecer e por isso a acção interposta pelo Ministério Público continua a ser útil.

No acórdão, lê-se ainda que a actualidade da acção “não é afectada por, alegadamente, já ter findado o procedimento administrativo referente à inventariação e classificação das obras de Joan Miró”. “Uma coisa é o que o MP pede, outras as razões por que o faz. As circunstâncias supervenientes só inutilizam a lide quando, por causa delas, o próprio pedido se esvai”, defendem os juízes, explicando "a autêntica pretensão do MP nestes autos cautelares ou na acção principal”: "O MP assumidamente crê que a expatriação das obras de arte em causa fere, desde logo, o património cultural do país. E é esse resultado deletério que o MP quer evitar.”

Para o Supremo, “não se pode afirmar, com a indispensável segurança, a inutilidade da lide, pois isso exigiria a certeza absoluta de que o processo dos autos é actualmente inapto para atingir os fins reguladores a que se inclina”.

Os juízes decidem, por isso, que o processo volte à estaca inicial, revogando o acórdão recorrido e determinando “a baixa dos presentes autos ao Tribunal Central Administrativo Sul para que o mesmo determine o seu prosseguimento nos ulteriores termos”. Ou seja, a providência cautelar do MP vai regressar ao tribunal para que possa ser analisada novamente, desta vez partindo dos pressupostos assinalados pelo Supremo, tornando-se improvável que esta acabe extinguida novamente. Na verdade, o tribunal não poderá decidir da mesma forma.

A decisão do Supremo acontece no mês em que 41 das 85 obras do catalão completam os dez anos em Portugal. Se, no Verão, o então director-geral do Património Cultural, Nuno Vassallo e Silva, arquivou o processo de inventariação e classificação da colecção porque as empresas se opuseram, no que diz respeito a este conjunto de 41 obras, a Parvalorem e a Parups já nada podem fazer. Estando há dez anos em Portugal, as peças podem ser classificadas sem a autorização dos seus proprietários, como determina a Lei de Bases do Património Cultural. Neste conjunto está, por exemplo, Femmes et Oiseaux  (Mulheres e Pássaros), de 1968, obra que foi anunciada como uma das estrelas do leilão cancelado e que foi avaliada entre os quatro e os oito milhões de euros.

Ainda há uma semana, o ministro da Cultura João Soares frisou a importância destas obras, mantendo-se fiel à posição do Partido Socialista em todo este imbróglio. Soares destacou não só a importância de uma exposição pública das obras, que poderia acontecer em Serralves, no Porto, sugeriu, como mencionou ainda a necessidade de se fazer uma inventariação “e depois uma avaliação para que o conjunto passe a pertencer ao acervo dos museus portugueses”.

O PÚBLICO contactou o ministro, mas este não quis prestar declarações, fazendo saber apenas, através do seu assessor, que ainda se aguarda “uma decisão deste recurso para o Plenário do Supremo Tribunal Administrativo” interposto pelo Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros (CEJUR). “O CEJUR recebeu instruções para recorrer”, acrescentou o assessor, sem esclarecer quem e quando intrepôs este recurso.

Cabe ao CEJUR a defesa do Governo, mas fica por esclarecer quem interpôs este recurso para plenário, que é constituído pelo presidente, os vice-presidentes e os três juízes mais antigos de cada uma das secções do Supremo. De acordo com o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ao plenário compete “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos e fiscais ou entre as Secções de Contencioso Administrativo e de Contencioso Tributário”.

O PÚBLICO contactou também o Ministério Público sobre este processo, mas não obteve resposta. No tribunal, em Lisboa, corre ainda uma acção principal, levantada pelo Ministério Público, cujo argumento central é o de que as obras pertencem ao Estado e não podem por isso ser vendidas. O MP alega que as empresas que querem vender as obras são entidades públicas e, por isso, os seus bens, obras de arte incluídas, também são públicos. Já Francisco Nogueira Leite, que preside às duas sociedades, defende que, apesar de serem públicas, as empresas se regem pelo direito privado.

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