Porque é que os dinamarqueses não se indignam com o que fazem aos refugiados?

Eurodeputado do partido do primeiro-ministro Rasmussen mudou-se para os sociais-democratas e acusou o Governo de estar a vender a alma à extrema-direita, com a lei para confiscar jóias aos requerentes de asilo.

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A Dinamarca deve receber 20 mil refugiados até ao final do ano Alkis Konstantinidis/REUTERS

O pacote de reforma da lei da imigração e asilo que o Governo dinamarquês está a preparar para ir a votação em Janeiro, e que inclui a confiscação de dinheiro ou jóias e outros objectos a refugiados que pareçam ter um valor superior a 3000 coroas (400 euros), levou um eurodeputado do partido do primeiro-ministro liberal Lars Lokke Rasmussen a passar para uma formação de esquerda, o Partido Social-Democrata. O Governo, diz, vendeu-se à extrema-direita do Partido do Povo Dinamarquês, que o apoia no Parlamento.

“As opiniões do Partido do Povo Dinamarquês são legítimas, mas não compreendo porque é que temos de as copiar”, declarou o eurodeputado Jens Rohde numa entrevista ao jornal Politiken publicada neste domingo, onde explicou a sua atitude. “Estou preocupado por não ver uma grande indignação no povo dinamarquês, por não ver mais pessoas a dizer que isto não pode ser assim. Não podemos aceitar que tirem as últimas jóias e os últimos restos de dignidade aos refugiados que cheguem à Dinamarca”, afirmou.

O novo pacote inclui 34 medidas para diminuir a imigração – embora neste ano em que a Europa recebeu tantos refugiados por causa da guerra na Síria, a Dinamarca tenha sido essencialmente um país de passagem, de caminho para a Suécia. Deve receber 20 mil refugiados até ao final do ano, enquanto a Suécia aponta para 200 mil.

A medida que mais escândalo causou na reforma da lei da imigração foi a intenção de permitir aos guardas de fronteira revistar as malas dos refugiados em busca de bens valiosos que poderão ser confiscados para pagar despesas relacionadas com os cuidados que o Estado tem com eles. “A Europa está a receber um grande número de refugiados. A Dinamarca recebe a sua parte. Mas se receber um grande número, a sociedade dinamarquesa fica sob pressão, e torna-se mais difícil garantir uma integração com sucesso”, defendeu na televisão a ministra da Integração, Inger Stojberg.

Segundo o que se entende do texto da lei – que será votada em Janeiro e deverá entrar em vigor em Fevereiro, diz o Washington Post – serão os próprios polícias na fronteira a decidir o que valerá mais de 400 euros ou menos. “Mas eles não são qualificados para isso”, sublinhou ao diário francês Libération Uffe Elbak, membro do novo partido ecologista de esquerda Alternativet, que entrou no Parlamento em Junho com 4,8% dos votos. Terão também de decidir no momento se os objectos a confiscar têm ou não “valor sentimental” para os refugiados – o que poderá evitar que sejam tomadas pelo Estado. Por outro lado, o decreto é omisso sobre o que será feito dos bens confiscados, diz o Libération.

Mas a confiscação de bens é algo que na Europa evoca uma memória violenta e que se julgava não poder regressar: a dos nazis que espoliaram os judeus de todos os seus bens, móveis e imóveis, até dos seus corpos – dos dentes de ouro, dos cabelos, da roupa usada que era reciclada para enviar para a Alemanha no esforço de guerra. Martin Lidegaard, um especialista de relações internacional do Partido Liberal Social, avisou que esta proposta causa danos à reputação internacional da Dinamarca, diz o Washington Post.

“Na Dinamarca, se tiver uma fortuna, pode arranjar-se sozinho. Se não tiver dinheiro, a comunidade paga. É o que acontece aos beneficiários das prestações sociais, e é o que acontece com os requerentes de asilo”, tentou explicar o primeiro-ministro dinamarquês em Bruxelas, na sexta-feira, face à tempestade suscitada internacionalmente.

O seu partido, de centro-direita, teve apenas 35 dos 179 deputados do Parlamento nas legislativas de Junho e a coligação governamental precisa do apoio da extrema-direita xenófoba, intensamente anti-imigração, para governar. A extrema-direita teve 21,1% dos votos – mais que o Partido Liberal (19,5%) do primeiro-ministro Rasmussen.

Por isso, não é a primeira vez que a Dinamarca, ao contrário da vizinha Suécia, aplica medidas restritivas da imigração ou da política de asilo – já reduziu os benefícios pagos aos refugiados em cerca de 50%. No Verão, Copenhaga fez publicar anúncios em jornais libaneses avisando refugiados sírios para não tentarem viajar até à Europa – pelo menos na Dinamarca, não seriam aceites. Algo semelhante ao que fez o partido de extrema-direita do país vizinho, os Democratas Suecos.

O principal objectivo desta lei, dizem analistas, é mesmo afugentar potenciais imigrantes e refugiados. Há uma petição online para exigir a retirada do decreto da agenda do Parlamento – no sábado mais de 8000 pessoas já a tinham assinado.

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