As eleições em Espanha: bem-vindo à Europa da contestação!

As eleições de 20/D em Espanha anunciam-se como o próximo passo da contestação e fragmentação política europeia em curso.

1. Um pouco por toda a União Europeia estão em crescendo os partidos de contestação. Podem vir da extrema-direita, da esquerda radical, ou eventualmente de ambas. Em 2014, as eleições para o Parlamento Europeu mostraram essa tendência no conjunto da União Europeia. Os dois grupos políticos tradicionais do establishment – o Partido Popular Europeu (PPE) e o Grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D) – perderam substancial votação face às anteriores eleições de 2009. O facto político mais marcante foi a ascensão dos partidos populistas e eurocépticos, sobretudo de direita (UKIP, Reino Unido, FN em França, etc.). Também nas eleições nacionais se detectam similares tendências. Os exemplos são fáceis de encontrar. À esquerda, o Movimento 5 Estrelas (Itália) de Beppe Grilo; o Syriza (Grécia) de Alexis Tsipras; ou o Podemos de Pablo Iglesias (Espanha). À direita, o UKIP (Partido da Independência do Reino Unido), de Nigel Farage; o Partido para a Liberdade (Holanda), de Geert Wilders; a Frente Nacional (França) de Marine Le Pen; o Partido dos “Verdadeiros Finlandeses” (Finlândia), de Timo Soini; ou o Jobbik (Movimento por uma Hungria Melhor), de Gabór Vona. Como se explica que partidos inexistentes há pouco tempo atrás, ou antigos mas sem grande relevância política, tenham ganho, nos últimos anos, crescente preferência dos eleitores, chegando, nalguns casos, ao governo? As razões podem ser nacionais, europeias ou globais, ou, mais provavelmente, tudo isso misturado. Vale a pena olhar melhor para estas.

2. Os partidos de contestação motivados por lógicas eurocépticas e/ou ideologias anti- antiglobalização, não são, em si mesmos, uma novidade. No entanto, recentemente, surgiram circunstâncias políticas que acabaram por impulsioná-los de uma forma até agora desconhecida. Provavelmente, os factores que mais têm contribuído para a sua ascensão são os seguintes: (i) a crise financeira e económica iniciada em 2007/2008 e o seu impacto social profundo, especialmente na Zona Euro; (ii) o fluxo de refugiados e migrantes económicos que afluem à União Europeia e geram receios de segurança – identitária e económica –, nos Estados de destino; (iii) a reemergência da Rússia como grande potência com ambições de domínio político e/ou territoriais no Leste europeu (Crimeia, Ucrânia). Estes factores muito diversos sentem-se de forma variável nas várias Europas. Há, naturalmente também, especificidades nacionais. Na Europa do Norte (Holanda, Finlândia, Dinamarca, etc.), são as preocupações dos cidadãos com os encargos financeiros que o endividamento dos países do Sul pode implicar para estes, que se reflectem politicamente. A isto junta-se o receio de uma deslocação em massa, para os seus territórios, de refugiados e migrantes económicos, num ambiente já tenso por razões de segurança ligadas ao terrorismo. É a direita populista e nacionalista, ou extrema-direita, quem mais ganha com estes receios e descontentamento. Na Europa de Leste (Polónia, Estados Bálticos, Hungria, Eslováquia, etc.) – para além do impacto social da crise financeira e económica –, são as inseguranças geopolíticas, ligadas à reemergência da Rússia e ao fluxo de refugiados, do Médio Oriente e Sul do Mediterrâneo, que tendem a predominar. Também aí acabam por ser os movimentos e partidos de direita populista e nacionalista, ou extrema-direita, a retirar vantagem do ambiente político internacional tenso e dos medos nacionais. Quanto à Europa do Sul (Grécia, Itália, Espanha, Portugal, etc.), o enorme impacto social na população da crise financeira e económica – e das políticas de austeridade ligadas à Zona Euro –, são o principal impulsionador do descontentamento e do protesto. Aqui a esquerda radical tende a emergir como o principal beneficiário. Enquanto o Norte e o Leste viraram maioritariamente à direita, o Sul da Europa, tem vindo a deslocar-se para a esquerda. Nesta altura, há governos de esquerda na Grécia, Itália, Malta, França e Portugal. A França, no entanto, apresenta uma situação específica: o governo de esquerda está sob pressão da extrema-direita.

3. Uma das principais consequências da ascensão dos partidos de contestação é a fragmentação do sistema político. Outra é a ameaça, a nível europeu, da hegemonia do Partido Popular Europeu (PPE) e do Grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), ou seja, da governação da União Europeia, tal como a temos conhecido. É verdade que a fragmentação do sistema político não é algo novo. Mas a intensidade com que está a ocorrer não era habitual. Em países como a Itália, desde o final da Guerra Fria, na década de 1990, que os partidos políticos se dissolvem, criam e recriam frequentemente. No entanto, a ascensão de um partido de contestação com as características do Movimento 5 Estrelas, de Beppe Grilo, é um dado novo. Ganhou um peso eleitoral importante que rivaliza com os principais partidos de poder, à esquerda (Partido Democrático e seus aliados) e à direita (Força Itália seus aliados). Noutros países, como na Grécia, a rotatividade que existiu desde a restauração da democracia em 1974, entre o PASOK (esquerda) e a Nova Democracia (direita), foi pulverizada pela crise económica e social onde emergiu o Syriza de Alexis Tsipras. O PASOK é actualmente um partido menor do sistema político grego. Também em França, a FN, em todas as últimas eleições – europeias e regionais –, rivaliza ou até ultrapassa o Partido Socialista de François Hollande e os Republicanos de Nicolas Sarkozy. Estes dois últimos partidos representam a tradicional rotatividade política, entre a esquerda e a direita no poder. Se a tendência se mantiver, as consequências no sistema político francês não vão deixar de ser importantes. Provavelmente, só não são já maiores devido ao sistema eleitoral para as eleições legislativas, assente no sufrágio uninominal a duas voltas. Este sistema, acaba por travar, à segunda volta, a ascensão de partidos como a FN, por coligações dos partidos tradicionais de esquerda e direita.

4. No Sul da Europa, o precariado – termo que resulta da combinação entre “precário” e “proletariado” –, é provavelmente o eleitorado que mais está a contribuir para quebrar a hegemonia dos partidos que habitualmente ocupam o poder. Não por acaso, é aí que estão os níveis de desemprego mais elevados, especialmente na Grécia e em Espanha, mas também em Portugal e na Itália, afectando drasticamente os mais novos. O precariado é essencialmente um eleitorado abaixo dos trinta, ou trinta e cinco anos, frequentemente qualificado e com diplomas académicos. (Ver o livro de Guy Standing, O Precariado: A nova classe perigosa, trad. port., Ed. Presença, 2014). Até certo ponto, é um sucedâneo do proletariado clássico, no sentido marxista do termo. Mas há também diferenças relevantes. Não resulta de um capitalismo ligado à revolução industrial – há cada vez menos indústrias na Europa. Menos ainda de famílias com proles numerosas – essas apenas subsistem em populações oriundas da migração não europeia. O que o caracteriza é a insegurança laboral, o subemprego, a ausência de perspectivas de uma actividade profissional ligada às suas qualificações académicas, frequentemente elevadas, ou até a impossibilidade de, simplesmente, encontrar um trabalho condigno. O precariado, o qual, naturalmente, é bastante heterogéneo, oscila entre a apatia social e política, o sentimento de frustração e a tentação da revolta. Por razões da sua situação pessoal (falta de perspectivas de vida), geracionais (população mais jovem e irreverente) e ideológicas (relativa apatia político-ideológica), pode ser atraído pelos radicalismos anti-establishment, à esquerda ou à direita.

5. As eleições de 20/D em Espanha anunciam-se como o próximo passo da contestação e fragmentação política europeia em curso. Antevê-se a quebra da rotatividade e hegemonia no governo, da esquerda e direita tradicionais. Nem o Partido Popular (PP) de Mariano Rajoy, nem o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) de Pedro Sánchez, terão qualquer possibilidade de governar sozinhos. Tudo indica, até, que vão estar muito abaixo das votações habituais. As forças políticas emergentes – as quais quebram o bipartidismo espanhol –, são o Cidadãos-Partido de la Cidadanía, liderado por Albert Rivera; e o Podemos, liderado por Pablo Iglesias. Na sua estratégia de afirmação política, ambos têm procurado fugir aos tradicionais rótulos ideológicos, de esquerda ou de direita. No entanto, com maior ou menor rigor, podem ser enquadrados no espectro político como sendo de centro (o Cidadãos-Partido da Cidadanía, situado algures entre o PP e o PSOE); e de esquerda radical (o Podemos, situado algures à esquerda do PSOE). Para além da questão ideológica, há uma fractura geracional que é particularmente importante em termos políticos. Em média, o eleitorado do Cidadãos e do Podemos é bastante mais jovem do que o do PP e PSOE. Mas o perfil de partido de contestação é mais vincado no Podemos. Os protestos anti-austeridade de 2011 em Espanha – o Movimento 15-M também conhecido como “Indignados” –, parecem ser a sua base sociológico-política principal. É também aí que se encontra o grosso do precariado. Resta saber se as eleições de 20/D vão levar ao poder os partidos de contestação que representam esse eleitorado e que influência terão no governo. Resta saber também que consequências irão ter na contestação independentista da Catalunha. Fica ainda em aberto a questão do impacto nas políticas da Zona Euro e da perda de aliados da Alemanha nos países mais afectados pela crise.

Investigador

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