Uma história à procura de Afonso Costa

Fica a faltar mais de Afonso Costa para se perceber a fundo quem foi de facto e como agiu porque agiu entre Março de 1916 e a sua queda do poder.

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Perante o património anterior de Filipe Ribeiro de Meneses, A Grande Guerra de Afonso Costa limita-se a ser apenas uma boa obra Rui GaudÊncio

O estudo e o conhecimento das causas e consequências da participação de Portugal na Grande Guerra há muito que superaram o vazio da historiografia do Estado Novo e o deslumbramento acrítico em torno da República nos anos pós-25 de Abril. Mas, pelo que se sabe e se conhece, permanecem ainda muitos nós por desatar. Perante um período pouco dado à linearidade, com sucessivos golpes de estado e uma permanente crispação política a exacerbar radicalismos e tensões sociais, será improvável e indesejável até que se consiga um retrato consensual. A Grande Guerra de Afonso Costa, do historiador Filipe Ribeiro de Meneses, professor no Departamento de História da Maynooth University, na Irlanda, é disso um bom exemplo.

É sabido que Filipe Ribeiro de Meneses jamais nos permitiria ver os anos da guerra com o olhar de Oliveira Marques, que encarava o percurso de Afonso Costa como um precoce caminho rumo ao socialismo, ou de Fernando Rosas. A sua perspectiva é traçada a partir de uma origem mais convencional, mais liberal, se quisermos. Também a sua escola nos garante diferenças – a sua devoção à História Política e a um registo narrativo tornam as suas obras muito mais fluentes e acessíveis do que as da maioria dos historiadores portugueses, por vezes excessivamente enfeudados na preocupação da tese ou da desmontagem da estrutura. Não seria por aí, portanto, que A Grande Guerra de Afonso Costa teria o condão de nos desiludir.

O que acontece, porém, é que há autores que nos criam expectativas, seja pelo seu ponto de partida, seja pelo registo, seja pelas obras com que nos surpreenderam – em concreto, o já razoavelmente distante União Sagrada e Sidonismo, Portugal em Guerra (1916-1918) ou a monumental biografia de Salazar. Ora, perante este património, a nova obra de Filipe Ribeiro de Meneses limita-se apenas a ser uma boa obra. O autor define-a dizendo que “não é uma história da participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial, nem uma história política do período: é uma tentativa de narrar e interpretar o trajecto de uma das figuras-chave da política portuguesa, num momento crucial da vida do país”. A sensação com que se fica no final é que o trabalho ficou a meio de todas estas premissas: é uma interessante história do período e um esboço mais do que razoável para uma biografia de Afonso Costa. Longe, por isso, de ser genial ou surpreendente.

Para o leitor comum que conhece apenas superficialmente os terríveis anos da Primeira Guerra Mundial em Portugal, este livro é sem dúvida um bom ponto de partida para se entenderem as vicissitudes do regime, a lógica de dominação do Partido Democrático ou a natureza da indiscutível hegemonia de Afonso Costa (exceptuando no governo de Pimenta de Castro e, obviamente, no de Sidónio Pais). Fica-se igualmente a perceber que o radicalismo com laivos messiânicos de Costa e dos seus pares, com destaque para Norton de Matos ou João Chagas, foi decisivo para que Portugal passasse da beligerância assumida para um envolvimento directo e catastrófico na frente de combate europeia. Mas ficam por se perceber mais aprofundadamente as motivações, ou os nexos de causalidade, que empurraram Costa, o seu partido e depois os evolucionistas para a guerra na Flandres.

Não é por falta de documentação nem de contextos que sobressai este breve vazio no final da leitura. Filipe Ribeiro de Meneses revisita fontes antigas, nacionais ou estrangeiras, acrescenta contextos originais e consegue, como é seu timbre, produzir uma narrativa fluida onde os eventos se encaixam compreensivelmente. E, com base nesse estudo, convoca-nos a participar em algumas polémicas sobre a guerra, a preparação do Corpo Expedicionário Português ou os mistérios que levaram Afonso Costa a abrandar o seu radicalismo depois de Abril de 1917 e a exilar-se com um pesado “silêncio perante a situação que destruiu o seu poder e o quis desonrar”, como notaria João Chagas. É neste jogo de encadeamentos que fica a faltar mais de Afonso Costa para se perceber a fundo quem foi de facto e porque agiu como agiu entre Março de 1916 e a sua queda do poder. O foco deste livro é uma personagem e é a sua diluição na história política do tempo que deixa a sensação de que houve neste empreendimento algo que podia ter corrido melhor. Sobra mais uma óptima narrativa dos anos da guerra, o que já não é pouco, mas falta um olhar mais denso, inteligível e consequente acerca de um dos seus maiores protagonistas.

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