Sobressalente sou eu

As coisas sobressalentes têm angústias próprias, só para elas.

Era aurora quando estiquei o braço para empurrar os meus óculos da mesa de cabeceira para o chão. Partiram-se. É quanto basta para se perceber que está tudo por um fio. Confiamos em tantos pequenos e falíveis objectos para atravessarmos a nado cada dia que se diria ter-nos já ocorrido, algures entre o quadragésimo e o sexagésimo aniversário, que é boa ideia ter versões sobressalentes de todas as coisas que nos são literalmente indispensáveis.

"Não tem um back-up?" pergunta docemente o técnico. "Não", respondo. "Mas é muito fácil fazer", informa-me. "Acredito", digo eu. "Aliás, é automático...", insiste. "Seja como fôr, não tenho back-up, está bem?"

Como eu admiro e compreendo Graça Castanho, a candidata a presidente da república que desistiu porque um temporal na ilha de São Miguel levou-lhe as assinaturas todas. Claro que ela poderia voltar a recolher as assinaturas. Mas recolhê-las segunda vez é impensável para uma vida tão curta.

As coisas sobressalentes têm angústias próprias, só para elas. Se tivesse um par de óculos para substituir os partidos que pensaria eu? Que tinha ficado sem os óculos sobressalentes e que, se partisse aqueles, estaria lixado.

Correria logo para o oculista, tal qual corri sem ter sobressalentes. Às vezes um back-up é uma cópia da insegurança. É um pessimismo (vou-me lixar de certeza) disfarçado de optimismo estúpido (felizmente não será já da próxima vez). Não vale a pena dar razão ao inevitável.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários