Câmara vota torre para Picoas que deixa à vista uma empena cega e “subjectiva"

Proposta de Manuel Salgado ignora objectivos do PDM e princípios definidos por ele próprio para evitar parede rebocada de mais de 20 metros de altura.

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A empena cega e o interior do antigo quarteirão vão ficar definitivamente em primeiro plano GUILHERME MARQUES

O que é uma empena cega e subjectiva? A definição não consta dos manuais de arquitectura. Mas empena cega é a parede lateral de um edifício que é construída sem janelas (cega) para se lhe poder encostar, mais tarde, um outro prédio a erguer no lote contíguo. E “subjectiva” é o qualificativo que a Câmara de Lisboa aplicou à critica dos municípes que questionaram, em Janeiro, a criação de uma empena cega de mais de 20 metros de altura em plena Avenida Fontes Pereira de Melo.

Em Janeiro deste ano, no final da discussão pública de um Pedido de Informação Prévia (PIP) relativo à construção de uma torre de 17 andares frente à Maternidade Alfredo da Costa, a câmara limitou-se a considerar “subjectivas” as críticas que lhe foram dirigidas pelo facto de o projecto deixar completa e definitivamente a descoberto a empena cega de um prédio de sete pisos existente no gaveto da Fonte Pereira de Melo com a Pinheiro Chagas.

Durante décadas, o imóvel em questão, tinha a seu lado um velho edifício unifamiliar que se encontrava em ruínas e foi demolido nos últimos meses. Esse foi também o destino do palacete e dos outros imóveis que ocupavam o quarteirão onde irá nascer a polémica torre que hoje será votada pelos vereadores e cujo promotor tinha fortes ligações ao Banco Espírito Santo

Na altura da discussão pública do PIP, houve quem criticasse por escrito o facto de aquela vasta superfície rebocada da empena cega ali ficar exposta, tal como ficarão as traseiras das restantes construções (Casa Museu dr. Anastácio Gonçalves) que antes fechavam o quarteirão, do lado da Rua Pinheiro Chagas.

Em resposta, na análise dos contributos apresentados pelos munícipes na discussão pública, os serviços camarários concluíram que tais observações “constituem críticas de carácter subjectivo às soluções de integração arquitectónica propostas pelo projectista”. Nada mais. Mas o assunto, consideram vários técnicos camarários que conhecem o processo, mas preferem não ser conhecidos, merecia muito mais do que isso.

Desde logo, porque a integração arquitectónica é precisamente aquilo que o Plano Director Municipal (PDM) exige, como condição de licenciamento, para construções como a que vai surgir naquele local. Diz o PDM (artº 42º) — aquele em que a câmara baseia a proposta de aprovação do projecto da promotora Edifício 41 (grupo ECS) — que só é possível construir ali um prédio isolado, com aquela altura, em situações excepcionais “devidamente ponderadas em função do espaço urbano em que se inserem”. 

E  diz ainda, e antes de mais, que essas obras têm de “contribuir para a valorização arquitectónica e urbanística” do local, além de terem de se “enquadrar nas características morfológicas e tipológicas [ali] dominantes”.

A verdade, porém, é que em todo o processo de licenciamento da torre (é assim que o edifício ali é designado) não existe qualquer espécie de avaliação, por parte dos responsáveis camarários, da articulação exigida pelo PDM  entre o projecto em causa e a envolvente. Nada se diz sobre a sua relação com o contexto urbano do quarteirão que ali existia antes das demolições efectuadas para construir o novo edifício. E muito menos se faz o seu contraponto com a tal empena cega.

Tudo isso, como se viu, foi reduzido à condição de “crítica subjectiva”. E por isso mesmo, numa resposta escrita dada ao PÚBLICO no início deste mês, o gabinete de Manuel Salgado, o vereador que subscreve a proposta de aprovação do projecto, confirma que a empena cega ficará a descoberto,  “sendo obrigação do dono da obra conferir [lhe] características de estanqueidade e de isolamento idênticas à de uma parede exterior”.

No entanto, foi o próprio Manuel Salgado, num documento datado de Novembro de 2013 em que definiu os “princípios gerais” a que deveria obedecer o projecto do edifício a construir naquele local, quem escreveu que o problema da empena tinha de ser resolvido. O “conjunto arquitectónio singular” definido pelo autarca nesse modelo urbano deveria ser composto “por uma torre de uso terciário, um remate de quarteirão com bloco de habitação e em subsolo uma zona comercial”.
 
No documento elaborado pelo vereador para servir de orientação ao concurso de ideias promovido pelo promotor, com o apoio da câmara, para escolher o projecto a desenvolver, foram incluídas imagens tridimensionais que dão a perceber aquele princípio. E o que é que elas mostram? Um edifício de sete andares de habitação e comércio que ficaria encostado à empena cega e virado para a torre de escritórios a erguer um pouco mais abaixo, com um atravessamento pelo meio entre a Fontes Pereira de Melo  e o jardim fronteiro à maternidade.

Meses depois, veio o PIP do projecto executado a partir da proposta vencedora do concurso de ideias. Nesse projecto já não constava o edifício de habitação e a superfície de pavimento autorizada tinha sido concentrada apenas na torre. 

Na análise do PIP, o abandono daquela solução para a empena cega, sem que tenha sido substituída por outra qualquer, foi ignorado. E isso mesmo aconteceu na apreciação do projecto que esta quarta-feira vai a votos na câmara. Agora só é preciso que a empena seja estanque e fique isolada como uma parede exterior.

Entre os técnicos camarários há quem tenha uma explicação: “Os interesses do promotor foram salvaguardados pela câmara.”

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