O jogador

António Costa é um jogador profissional que apostou o país para não ter de sair do jogo. Inaceitável? Com certeza. Só que a concretização dessa insensatez é a maior prova do seu talento.

Tenho um leitor que me envia mails regulares a perguntar quando é que me retracto da minha velha opinião acerca de António Costa. Se antes das eleições eu andava a elogiar as suas qualidades e a considerá-lo um excelente candidato a primeiro-ministro, e se depois das eleições acabei a escrever cobras e lagartos acerca dele e da sua estratégia de assalto ao poder, então só me ficaria bem, afirma o leitor, assumir publicamente que me enganei.

A certa altura, já desesperado com a ausência do meu acto de contrição, o leitor até enviou uma sugestão de início de texto, para, segundo ele, me “ajudar a começar”: “Logo a seguir às eleições, no meu comentário semanal neste jornal, considerei que António Costa era a pessoa indicada para continuar à frente do PS. Passados dois meses tenho de reconhecer que me enganei redondamente...” Há que louvar tanto trabalho em prol da coerência de um articulista. E embora tal não chegue para obter o desejado arrependimento, chega, pelo menos, para obter esta justificação.

A pergunta é pertinente: se entendo que António Costa enganou os portugueses, se considero o seu governo politicamente ilegítimo, se não acredito em messias, porque é que não admito simplesmente que me enganei em relação a ele? A resposta mais simples é esta: porque ainda não o percebi totalmente. Digamos que faltam algumas peças para completar o seu puzzle, que só o tempo trará.

José Sócrates, Passos Coelho e António Costa têm uma característica em comum: demasiado jovens para terem um percurso político pré-1974, cresceram no seio das jotas, têm formação académica limitada, ninguém lhes conhece qualquer pensamento original, e são essencialmente pragmáticos. Chegaram ao poder munidos de meia-dúzia de post-it ideológicos que colaram na secretária com a mesma convicção com que nós penduramos a lista de compras na porta do frigorífico (os post-it actuais são “crescimento” e “qualificação”), e a partir daí foram gerindo aquilo que lhes acontecia da melhor forma que foram capazes (demasiadas vezes, não chegou). “Esquerda” ou “direita” não eram o caminho, mas apenas as muletas que lhes permitiam caminhar: apoiavam-se numa ou noutra, consoante o que lhes era mais útil a cada momento.

Estando eles totalmente concentrados na acção e faltando ao seu percurso qualquer reflexão consistente, os pragmáticos são demorados de compreender. Para utilizar uma metáfora condizente com a nova aposta no sector primário, é preciso abrir o melão para conhecermos a sua qualidade – e neste momento António Costa é ainda um mistério. Esse é o único estado de graça que estou disposto a conceder-lhe.

Se virmos bem, há sinais contraditórios. O percurso de António Costa na Câmara de Lisboa é, em boa parte, o de um liberal, que quis simplificar procedimentos e abrir a cidade à iniciativa privada. A frieza com que assaltou São Bento é coisa muito mal feita, mas de uma forma muito bem feita. As suas qualidades políticas são indiscutíveis, mas ainda ninguém sabe como ele as irá utilizar. Quando António Costa afirma no Parlamento que “aquilo que o PCP não está disponível para apoiar é aquilo que nós não estamos disponíveis para propor” eu sinto um arrepio na espinha. Mas pode ser mera estratégia – passei de o criticar por mentir a desejar que nos minta. António Costa é um jogador profissional que apostou o país para não ter de sair do jogo. Inaceitável? Com certeza. Só que a concretização dessa insensatez é a maior prova do seu talento.

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