No Algarve, um em cada três empréstimos às empresas está em incumprimento

Rácio de crédito vencido é o dobro da média nacional. A bolha da construção deixou o Algarve a flutuar.

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Muitas empresas foram do norte e do centro trabalhar para o Algarve, procurando alternativa à falta de trabalho, diz o presidente regional da AECOPS, Manuel Gonçalves Manuel Roberto

O nível de incumprimento das empresas portuguesas permanece bastante elevado, mas há uma região onde o problema se assume como endémico: no Algarve, um em cada três empréstimos bancários está em incumprimento. Para se ter uma ideia ainda mais clara do que se passa no Sul do país, o rácio de crédito vencido das sociedades não financeiras, que em Setembro estava nos 31,3%, é quase o dobro da média nacional (16,5%). A segunda zona mais problemática é a Madeira, com 20,3%, enquanto os Açores estão no lado oposto, com 8,1%, de acordo com os dados do Banco de Portugal.

Com uma economia muito baseada na construção e no imobiliário, bem como nos serviços ligados ao turismo, o Algarve começou a registar um aumento do crédito malparado nas empresas logo em 2007/2008, quando começou a crise financeira nos Estados Unidos. No entanto, a região estava a par e passo com o resto do país, um padrão que se alterou a partir de Junho de 2011, data em que o país perdeu o acesso ao financiamento externo e teve de recorrer à troika de credores (BCE, FMI e Comissão Europeia).

Com o travão a fundo da economia portuguesa, que atravessou uma profunda recessão em 2012, e congelamento de novos empréstimos, os sectores da construção e do imobiliário foram dos mais afectados, com ondas de choque no desemprego. É nesta altura que o Algarve, onde muitas empresas destes sectores estavam activas, começa a divergir da média nacional.

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Em 2012, por exemplo, o rácio de incumprimento das sociedades não financeiras da região algarvia sobe dos 11,6% para 18,6%, enquanto a média nacional passa de 7% para 10,6%. Em Setembro deste ano, última data para a qual há dados disponíveis, o Algarve passou mesmo, pela primeira vez, a fasquia dos 30%. Nesse período, o rácio de crédito vendido do sector da construção fixou-se nos 31,5%.

Uma “bolha” a flutuar
Esta realidade, no entanto, não causa surpresa aos empresários da região. O sucesso da recuperação do sector turístico “só existe nos discursos das entidades oficiais”, diz Elidérico Viegas, presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve (AHETA). Para conhecer a realidade, acrescenta, “basta olhar para o número das empresas que caíram nas mãos da banca, ou de fundos imobiliários”.

O empreendimento turístico dos Salgados — Albufeira (grupo Carlos Saraiva), onde se realizou na semana passada o congresso das agências de viagens, é um dos exemplos da situação descrita pelo representante do sector da hotelaria e turismo, sem esquecer o caso do resort Vale do Lobo, onde a Caixa Geral de Depósitos tenta recuperar os 300 milhões de euros que ali colocou.

É longa a lista dos aparthotéis e hotéis, colocados entre parêntesis, a aguardar por melhores dias. Em Monchique, o Longevity Resort, uma aposta do turismo de saúde, na serra, é outro exemplo. “Consequências da bolha imobiliária associada ao turismo”, enfatiza o representante da hotelaria e turismo.  

 O presidente regional da Associação de Empresas de Construção, Obras Públicas e Serviços (AECOPS), Manuel Gonçalves, retrata o início da crise: “Muitas empresas vieram do norte e do centro do país trabalhar para o Algarve, procurando no Sul uma alternativa à falta de trabalho.” A partir daí, deu-se um “desajustamento no mercado” das obras públicas e particulares. A fuga para a frente, sublinha, traduziu-se nos valores das empreitadas. “Procuravam ganhar os concursos a qualquer preço, para se aguentarem.” A seguir, acto quase contínuo, chegaram os “incumprimentos em cadeia”. Ao mesmo tempo, diz, o Governo “decide cortar tudo o que era pagamentos das obras públicas, mas continuou a exigir o cumprimento das obrigações fiscais”. A acentuar o lado negativo, a banca fecha a torneira do crédito. A região que se gabava de não ter desemprego, principalmente no Verão, passou a ser aquela com maiores percentagens de trabalhadores inscritos nos centros de emprego.

Os construtores, sublinha Manuel Gonçalves, “tiveram, em muitas situações, de entrar com bens pessoais para segurarem as empresas, e mesmo assim foram ficando pelo caminho”. Um dos casos mais conhecidos foi o de um empresário de Almancil, que se suicidou há cerca de três anos no estaleiro da obra, depois de ter vindo de uma reunião em Lisboa com entidades bancárias. A empresa familiar, que dirigia, chegou a ter mais de centena e meia de trabalhadores. Carlos Ataíde, economista, adianta que “não foram só os grandes a fechar porta”, e que “os pequenos também não sobreviveram”.

Neste momento, Manuel Gonçalves diz ver no mercado “sinais de recuperação” e alguma “selecção natural” ditada pela própria crise. “As empresas tinham pouco capital próprio, as que se aguentaram foram as que conseguiram a reformulação dos financiamentos.” Elidérico Viegas conclui: “A bolha imobiliária, empurrada pela facilidade de crédito, deixou o Algarve a flutuar.” Actualmente, comenta, “as coisas estão a mudar, mas ficam longe do que já foram”.

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