Ir ao encontro das necessidades de cada idoso

Serviço domiciliário não só mais do que duplicou desde o início do século como tem vindo a diversificar-se. A Santa Casa da Misericórdia da Trofa faz jogos de estimulação sensorial e cognitiva todos os dias com os idosos.

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Adriano Miranda / Público
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Dezenas de molduras com fotografias de Fernanda Fernandes, do marido, dos três filhos, dos cinco netos, dos cinco bisnetos e de outros familiares. O marido já morreu, apenas um filho mora em Portugal, e ela passa horas sozinha na sala, com as persianas corridas, o televisor ligado. Tem uma lanterna no sofá. “De noite, apago tudo. Aponto para acolá e vejo as horas”, diz, na sua voz firme, retumbante, indicando um relógio redondo encaixado no armário. “O meu filho chega aqui e abre as janelas. Eu digo-lhe: não vês que não posso estar assim, que me dói a cabeça. A mãezinha desabituou-se, ele diz.”

Habituou-se a estar sozinha, a meia-luz, com televisões a trazer-lhe os barulhos do mundo e raparigas de bata branca a garantir-lhe que nada lhe falta. Esteve sem falar com o filho e, nessa altura, quase só ali entravam as equipas do serviço domiciliário da Santa Casa da Misericórdia da Trofa. “Estava a ver quando é que ele cá vinha. Ele sabe que a mãe lhe faz muita falta.”

Portugal é um dos países mais envelhecidos do mundo. “Não dá para acompanhar a evolução demográfica com camas em lares”, adverte o vice-presidente da União das Misericórdias, Carlos Andrade. “Para isso, não bastaria ter um lar em cada terra. Teria de haver um lar em cada rua.”

O número de lugares de apoio domiciliário mais do que duplicou desde o início do século. De acordo com a última Carta Social, o país passou de 48.700, em 2000, para 104.500, em 2014. Não é de mais. Segundo o Observatório Português dos Sistemas de Saúde, há 110.355 pessoas dependentes no domicílio, isto é, que estão em casa e precisam de ajuda para actividades básicas como sair da cama, comer, mudar de roupa, ir à casa de banho. Destas, 48.454 estão acamadas.

As equipas da Santa Casa da Trofa levam comida a Fernanda Fernandes, tratam-lhe da casa e da roupa, organizam-lhe os medicamentos para a semana. Sempre que necessário, uma das cuidadoras mete-se no carro e vai-lhe às compras. Não pode ir ao supermercado mais próximo. Ela só gosta da água vendida noutro. “É uma água saudável. Tem gás, mas poucochinho”, diz.

Todos os dias, uma cuidadora senta-se com ela na cozinha para fazer um exercício de estimulação cognitiva ou sensorial. O desafio desta tarde é encaixar as peças de um dominó que, em vez de pontos pretos, tem quadrados de favas, feijões, grão-de-bico, ervilhas, café, milho, arroz e outros produtos. “Nunca aprendi a fazer jogos. Para mim, fazer jogos era ir para o campo plantar batatas!”

Fernanda Martins, a responsável pelo serviço domiciliário, é que fez grande parte dos jogos usados pelas cuidadoras em cada casa. “São coisas básicas”, explica ela. “Levam a uma maior proximidade. E permitem pensar, exercitar a mente.”

“A filosofia do apoio domiciliário é a proximidade”, salienta Filomena Bordado, da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS). “Deve ir ao encontro das necessidades de cada idoso, de cada família. Há necessidades que são básicas e necessidades que são próprias de cada um. E há muitas instituições que têm sido criativas a responder a essas necessidades.”

A comparticipação da diversificação do serviço foi negociada há dois anos por sugestão de misericórdias, mutualidades e instituições particulares de solidariedade social. Seguindo uma tendência verificada noutros países europeus, já não tem de se ficar pelo pacote básico — fazer higiene pessoal, limpar e arrumar a casa, fornecer refeições, lavar, secar e engomar roupas. Pode incluir actividades de animação, lazer, cultura, aquisição de géneros alimentares, pagamento de serviços, teleassistência, transporte, cuidados de imagem, pequenas modificações ou reparações em casa.

A mudança de paradigma nota-se na Trofa. “À medida que [Fernanda Martins] vai encontrando necessidades, vai expondo”, salienta a directora da Santa Casa, Zélia Reis. Ainda agora decidiram alargar o serviço, que começa às 8h, das 20h30 para as 22h. “Começaram a surgir pedidos para que pudéssemos dar apoio na mudança de fraldas à noite.”

Mudam a fralda de Alfredo Pinto três vezes por dia. Nem quer pensar como seria se lha mudassem apenas uma vez por dia, como acontece a alguns idosos do país. “A comparticipação do Estado e das famílias faz-se por utente, por serviço. Antes contava uma mudança de fralda, mesmo que façam três ou quatro. Agora conta duas”, torna Filomena Bordalo. “Foi o que se conseguiu.”

Se não vivesse com um filho, portador de debilidade mental, talvez Alfredo já estivesse num lar. Os médicos amputaram-lhe as pernas. Primeiro uma. Pouco depois, a outra. Problemas vasculares, diz eles. Não sabe quais. Entretém-se com o televisor que está pousado numa pequena estante montada no fundo da cama. “Não ligo muito. Estou aqui deitado. Não posso estar de pé...”

Trouxeram-lhe a cama articulada, o colchão antiescaras, a cadeira de rodas, a cadeira de banho. A cada manhã, ajudam-no a tomar banho, a vestir-se. A cada meio-dia, ajudam-no a sentar-se, a comer. À tarde, enquanto uma cuidadora lhe dá um jeito na casa, outra conversa com ele, desafia-o a jogar qualquer coisa. Fazem-lhe a terceira muda de fralda e dão-lhe jantar.

Nem sempre quer comer. É preciso insistir. Em dias de sol, como este, uma cuidadora leva-o ao café mais próximo. O estabelecimento não tem rampa. Ficam ambos na estrada. O filho sobe os dois degraus e volta com um café. E Alfredo toma-o ali mesmo, no passeio. Fuma o seu cigarro. Vê a vida passar.

Perante idosos tão desamparados, a equipa tem de estar mais atenta, de ser mais presente. Quando Alfredo mudou de um segundo andar para um rés-do-chão adaptado a pessoas com mobilidade reduzida, Fernanda Martins pediu a beneficiários de rendimento social de inserção que apoia para o ajudar a empacotar os pertences, a fazer a mudança, a arrumar. Num dia, estava tudo no sítio.

Acontece levarem-no ao lar da Santa Casa. Os idosos do serviço domiciliário vão sendo convidados a participar nalguma actividade colectiva organizada no lar ou a relaxar uma sala equipada com diverso material sensorial. E quem tem serviços básicos pode comprar serviços extra: cabeleireiro

barbeiro, análises clínicas, ajudas técnicas (camas articuladas, cadeiras de rodas, cadeiras de banho, andarilhos, colchões antiescaras) e acompanhamento personalizado (companhia).

Não são serviços que interessem aos 130 utentes da Santa Casa. O cabeleireiro é usado por uns dez, o banco de ajudas técnicas por uns 20, o serviço de análises clínicas depende, revela Fernanda Martins. E é este tipo de diversificação que, na opinião de Carlos Andrade, justifica uma taxa de utilização de 73,9 no serviço domiciliário a nível nacional e não um excesso de oferta de serviços básicos, como alguns dizem.

Hoje, há um corte de cabelo. O de Guilhermina Moreira, que já não fala, solta sons que só o marido, Horácio, por vezes percebe. Duas cuidadoras seguram-na. A cabeleireira, Conceição Moreira Macedo, corta-lhe os cabelos bem curtos. “Fica mais fresquinha.” Há três anos que ela passa os dias e as noites numa cama articulada montada ao lado de uma cama fixa na qual se deita Horácio. Procura-o com o olhar. Estão casados há 52 anos. “É uma vida inteira, mas ainda há outra vida para enfrentar”, diz ele.

Diz que ainda a ama mais agora, que ela está tão frágil, por força da doença de Alzheimer, do que antes. “Não se pode abandonar... Quando ela tinha saúde, não adormecia sem eu chegar à cama. Ela dizia: ‘Não vens?’ E agora, quando ando por aqui, ela é a mesma coisa. ‘Nanananana’. Eu venho, deito-me, acabou, acabou tudo. Ela fica viradinha para mim”, prossegue. Dorme a noite toda. “Graças a Deus, ela dorme bem. Pior é de manhã, para fazer a higiene.” Grita muito. Está na mesma posição desde o final da tarde, quando por ali passa a última equipa do serviço domiciliário para a posicionar e alimentar. De manhã, quando chega a primeira equipa, está rígida. São muitas horas sem se mexer. Dão-lhe banho, massajam-na, deixam-na relaxada, a dormitar. E ele fica a olhá-la, com aquele ar embevecido. “É uma vida inteira, mas ainda há outra vida para enfrentar”, repete.

 

1ª de 5 reportagens da série Portugal sobre rodas. Próximo domingo, oficina móvel na Guarda

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