Paris, outra vez Paris

O turismo vai resistir, dizem-nos. Essa horda de hunos sem Átila voltou à ribalta por causa de Paris, da bela e atormentada Paris, que não chegou a respirar um ano inteiro antes de novo golpe, na quarta 7 de Janeiro o Charlie Hebdo, na sexta 13 de Novembro o Bataclan e o resto. Disse-se, por ocasião do 11 de Setembro, que os terroristas não gostam de cidades. É meia verdade, porque não gostam também das pessoas que as habitam, da sua liberdade e alegria. Claro que Paris resistirá. Como resistiu ao seu próprio Terror e guilhotina setecentistas, como resistiu à ocupação e ao nazismo, como soube reinventar-se durante e após o Maio de 68.

Mas era de turismo que falávamos e este, apesar dos mil e um atentados que assolam o mundo (há dezenas de países afectados em todos os continentes, segundo as estatísticas da OMT), lá vai resistindo: acusa cada golpe, retrai-se momentaneamente e regressa em força. Não desiste.

Como não desistem os franceses. Este Verão, Paris lá estava, entregue aos turistas e às suas deambulações errantes: o ambiente de “feira” à roda da Torre Eiffel, a monumentalidade do Louvre e os encantos da Orangerie (pode alguém pensar em atentados enquanto contempla as Nymphéas, esse “refúgio de paz” que Monet quis oferecer aos parisienses?), o remanso das Tulherias e a desmesura de Versalhes, o pulsar de vida nas ruas (foi neste que os fanáticos assestaram as suas baterias de ódio) e a arte nos museus, nas galerias, nas caves, um pouco por todo o lado. No Caveau de La Huchette, por exemplo, cantava Maurey Richards, antiga voz dos Platters há muito convertido aos blues. No saxofone, Sweet Screamin’ Jones. Uma festa. E a cave antiga cheia de gente, a dançar dos compassos mais lentos aos ritmos mais feéricos. Sim, música e dança. Quem tiver visto o filme Parigi é Sempre Parigi (1951), de Luciano Emmer, há-de recordar-se dos momentos em que Yves Montand (ainda não tinha 30 anos!) canta numa cave enquanto pares rodopiam à sua frente. Até Les feuilles mortes, de Prévert e Kosma, servem a pista de dança e os amores do momento. Há um excerto no YouTube, vejam-no.

Mas Parigi é Sempre Parigi (filme italiano, em co-produção italo-francesa) tem, para lá de Montand, de Marcello Mastroianni, de Lucía Bosé e do impagável Aldo Fabrizi, uma das cenas mais notáveis do cinema relacionadas com o turismo de massas: a visita ao Louvre. Convém, antes de a relatar, explicar a trama do filme. Trata-se da saga de um grupo de italianos que vai a Paris, em viagem turística, assistir ao França-Itália em futebol. Peripécias à parte, que o filme é uma comédia temperada de melancolia, há um momento em que o grupo é metido num autocarro para uma “volta rápida”. Andrea (Fabrizi) protesta: “Se não pararem, não se vê nada. Diz-nos para olhar para aqui, para ali...” O guia pede-lhe calma, mas ele queixa-se: “Eles que parem o autocarro! Estou a ficar com um torcicolo.” “Não podemos estar sempre a parar”, responde o guia, contrariado. Mas param. “Agora vamos visitar um dos maiores e mais belos palácios do mundo, o Louvre, que contém peças artísticas numerosas e incomparáveis...” O autocarro pára, o grupo entra no museu. “O Louvre tem seis museus. Não vamos poder vê-los todos...”, diz o guia. A câmara não os segue, fica a varrer lentamente o movimento da praça. A voz do guia ouve-se então em “off”, veloz como num relato de futebol: “Cá estamos no Louvre! Por favor, não se dispersem. Como vêem, o Louvre é composto por seis museus: etrusco, greco-romano, egípcio, italiano e mais dois. À esquerda, a Vénus de Milo. Por aqui, acede-se às antiguidades egípcias, nada de muito interessante. À esquerda, cuidado com os degraus, as antiguidades orientais. Todos juntos, por favor. Vejam, A Vitória de Samotrácia! Menina, por favor, não fique para trás. Agora estamos no primeiro andar, a Galeria de Apolo. Viramos à esquerda. Esta galeria tem 275 metros. Parem! A Mona Lisa. Viram? As alas laterais não têm grande interesse. Finalmente, chegamos ao rés-do-chão, esculturas de diferentes épocas. A visita terminou. Não falta ninguém? Vamos.” Tudo isto em 33 segundos!

Ora este Verão a Mona Lisa continuava lá, cercada por uma multidão de turistas a fotografá-la. Tê-la-ão visto? Não havia era as feuilles mortes, terríveis neste Outono. Mas temos sempre a Primavera. Como teremos sempre Paris.

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