Assis-pachequiano

A edição de um inédito, o folhetim Bronco Angel, o Cow-boy Analfabeto, dá início à publicação da obra completa de Fernando Assis Pacheco. É o regresso do escritor que fez das palavras e da ironia o ofício de uma vida e que morreu há vinte anos, estava na Buchholz a comprar livros.

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Fernando Assis Pacheco teve em vida o reconhecimento que se dá a quem possui múltiplos talentos, uma admiração entre pares e nos leitores que o seguiam nos jornais e nos livros, mas que nunca conheceu o prestígio ou, muito menos, as vendas que a qualidade do que fazia teria justificado

Um homem à mesa. Esta é a imagem que João Pacheco gosta de ter do pai. À mesa a comer, a beber, a conversar, a rir, a escutar... Estar à mesa era condição da vida variada, múltipla de Fernando Santiago Mendes de Assis Pacheco, o jornalista, poeta, romancista, tradutor, letrista, o escritor que morreu faz no dia 30 vinte anos e de quem se acaba de editar pela primeira vez em livro Bronco Angel, o Cow-boy Analfabeto, conjunto de textos que compõem uma espécie de folhetim, publicados ao longo de 28 semanas, em 1983, no jornal satírico de vida muito breve O Bisnau, dirigido pelo também jornalista e amigo Afonso Praça. Este inédito marca o início da edição de toda a obra de Assis Pacheco pela Tinta-da-China.

Bronco Angel é uma paródia, um jogo de linguagem, uma sátira a um período bem definido, com personagens e acontecimentos facilmente identificáveis por quem tem memória do que foi o início dos anos 80. Está assinado com um pseudónimo que celebra galhardamente duas grandes referências da literatura: Faulkner e Hemingway. Assis juntou-os e criou o escritor William Faulkingway que lhe permitiu colocar Bronco Angel a viver algures no sul da América. A cada capítulo, brinca acerca da identidade do autor destas memórias de Bronco, que haverá de ser xerife e nasceu após 14 semanas de gestação, criado com muitos “porradões na cabeça”, reacção à lentidão e pouca inteligência do cow-boy: “Um leitor de Moncarapacho insinua que W.F. não é outro senão a sra. Margareth Thatcher, dada a aleivosia com que fala dos computadores do Algarve. Lembramos-lhe que estas memórias são de Bronco Angel, limitando-se W.F. a desalfabetizar o texto.”

A narrativa sobre a existência de Bronco Angel desenvolve-se num estilo reconhecível. “Bronco Angel, o Cow-boy Analfabeto é um divertimento onde adivinhamos a gargalhada do Assis a cada frase”, refere Carlos Vaz Marques, responsável pela organização deste volume e que está a trabalhar na edição das obras de Assis Pacheco que a Tinta-da-China começa agora a publicar – reedições e pelo menos quatro volumes de inéditos, a sair numa cadência ainda não definida. Certo é que antes da Feira do Livro de Lisboa, na Primavera, “haverá outro inédito”, assegura Vaz Marques.

O humor no centro da obra
É um livro com muitas marcas da escrita de Assis Pacheco. Ironia, grande domínio e cuidado com a linguagem, sátira, atenção ao tempo em que vive, com notas sobre política, sociedade, cultura, gastronomia. Não será um dos seus livros maiores, mas a gargalhada está garantida e traz de volta um dos autores mais singulares da segunda metade do século XX em Portugal. “Levava extraordinariamente a sério aquilo que fazia, ao ponto de ter dedicado uma vida inteira ao ofício das palavras, sempre exigente, sempre criterioso. Mas não é preciso tê-lo conhecido, basta lê-lo, para perceber imediatamente o quanto ele não se levava demasiado a sério. Esta novela, que nasceu nas páginas de um jornal humorístico de curta duração, expõe o humor de Assis Pacheco à solta, numa espécie de processo de associação livre a partir das fantasias que o cinema e alguma literatura instilaram em leitores e espectadores formados no universo da cobóiada”, afirma Carlos Vaz Marques, recuperando um pensamento que está no prefácio a esta farsa e encaixa na ideia que Assis Pacheco tinha de si na literatura e que Vaz Marques cita nessa apresentação: “Literatura-literatura, bah! Viva o português de quatrocentas calhoadas ao minuto, que é por onde respiro!”

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A escrita de Assis Pacheco era um reflexo da vida e não uma actividade sagrada

Fernando Assis Pacheco teve em vida o reconhecimento que se dá a quem possui múltiplos talentos, uma admiração entre pares e nos leitores que o seguiam nos jornais e nos livros que primeiro fazia circular em modestas edições de autor, mas que nunca conheceu o prestígio ou, muito menos, as vendas que a qualidade do que fazia teria justificado. “Talvez por nunca se ter levado muito a sério e ter feito do humor o centro da sua obra. Isso não era, e continua a não ser, muito comum”, refere Gustavo Rubim, ensaísta, professor de Literatura, investigador. Depois da morte, tem merecido uma atenção irregular, mas, salienta Rubim, “nunca foi esquecido, tem um conjunto permanente de cultores” que hesitam na hora de escolher qual o Assis que mais os marcou. O da poesia de Cuidar dos Vivos, livro de estreia em 1963, Kâu Kiên: um Resumo (1973), de Memórias de um Contencioso e Outros Poemas (1980), Variações em Sousa (1987), Musa Irregular(1991) ou Respiração Assistida, livro póstumo publicado em 2003. O Assis da ficção, onde se contam essencialmente dois títulos, Walt (1978), a que chamava “noveleta”, centrado na guerra colonial, e Trabalhos e Paixões de Benito Prada, o único romance que publicou, em 1993. Ou ainda o Assis dos jornais, das crónicas, reportagens, entrevistas de que se editou em livro uma colectânea, Retratos Falados (2001), ou Memórias de um Craque (2005). Há ainda o Assis que participou no programa de televisão A Visita da Cornélia (1977) e tornou o seu rosto reconhecível em todo o país, o Assis autor da letra de Nini, a célebre canção de Paulo de Carvalho, ou o Assis tradutor de Gabriel García Márquez ou Pablo Neruda. “Era um inovador, um autor-laboratório. Na literatura portuguesa há alguns casos, são autores-cometa que não conseguimos colocar numa prateleira determinada. O Nuno Bragança, o Almada, o Tomás de Figueiredo. O Assis Pacheco também”, refere João Paulo Cotrim, editor, jornalista que em 1994 o entrevistou para a revista Ler.

Jornalista-escritor
A mudança de direitos de publicação da obra de Assis Pacheco para a Tinta-da-China dá-se numa altura em que terminou o contrato que a vinculava à Porto Editora e coincide com o aniversário da morte do autor, que aconteceu à hora de almoço de uma quarta-feira, quando cumpria uma das suas rotinas: ver as novidades na livraria Buchholz, em Lisboa, perto da redacção da Visão onde trabalhava e que se situava na Avenida da Liberdade. Desde que recebeu cem livros de presente ao terminar a quarta classe - como conta aqui o filho - não parou de aumentar uma biblioteca que foi ocupando “todas as paredes das casas por onde andou”.

Três dias antes dessa última visita à Buchholz, corrigira pela última vez o poema Respiração Assistida. “Eu vi? ouvi a morte?/ e por instantes/ era ela - luz negra -/ tentando cegar-me." O título do poema foi escolhido por Abel Barros Baptista para título do livro póstumo de poesia de Assis Pacheco publicado em 2003 na Assírio & Alvim. Tinham passado quatro anos desde a edição da sua obra poética na colectânea Musa Irregular e dois sobre o romance Trabalhos e Paixões de Benito Prada, livros que lhe valeram um reconhecimento que nunca procurou. “Uma das características que melhor definem Assis Pacheco é a facilidade com que fazia tudo. Era tão bom jornalista, como bom poeta, fazia tão bem crónica com crítica literária, entrevista ou reportagem”, salienta Barros Baptista que acrescenta: “Ele não tinha nenhum apreço pela ideia clássica de obra. Quando oferecia poemas aos amigos, o que acontecia muito, não guardava cópias. Havia uma displicência em relação à ideia de obra”, ou como sublinha Gonçalo Duarte, autor de uma tese defendida da Sorbonne (Paris), onde compara a poesia de Assis Pacheco à de Adília Lopes, era alguém com a intenção de “fintar a grandeza”. “A poesia de Assis e Adília é despretensiosa, aparentemente simples e jocosa, e no entanto muito séria, de significados profundos”, diz, numa síntese brevíssima, sobre pontos de contacto entre dois escritores marcados pela extrema independência. 

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Poeta da ironia, escritor satírico de “grande engenhosidade e experimentação”, como refere ainda Abel Barros Baptista; um “poeta muito perfeito”, da “estirpe dos jornalistas-escritores onde era dos grandes”, diz o amigo e também editor João Rodrigues; “um escritor que liga prosa e poesia à língua quotidiana e onde o pessoal e o local estão muito presentes”, nota Gustavo Rubim; com um trabalho poético “entre o lirismo e humor”, que cultivava “a sátira e a auto-ironia”, um “observador entre o picaresco e o terno”, acrescenta Nuno Costa Santos, escritor, guionista, que em 2012 publicou Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco a que chamou de “crónica biográfica”, tomando como referência um dos géneros melhor cultivados pelo autor de Musa Irregular; “nele, a literatura era o palco do lúdico”, afirma João Paulo Cotrim; “era um grande avaliador, muitíssimo culto, e quando contava uma história fazia-o quase sempre entre o riso e a melancolia”, recorda Francisco José Viegas, que o conheceu no Jornal de Letras, em 1983, o ano do Bisnau. “O jornal era planeado ao almoço, à mesa do restaurante Esquina da Fé (junto à Rua de S. José). O Afonso Praça, o Mário Zambujal, o José Manuel da Nóbrega juntavam-se e iam chamando uns quantos”, conta Viegas, lembrando que por essas horas Assis deveria andar pela Buchholz. “Ele lia tudo.” Uma ideia que João Rodrigues complementa, dizendo que, embora sem empáfia ou soberba, mas por ser um grande conhecedor ele “perseguia a perfeição”. No jornalismo como na literatura. No poema ou na crónica onde se destacava o Bookcionário, exercícios de síntese sobre livros ou, como lhes chama Abel Barros Baptista, “pérolas da crónica literária” ou os textos de Memórias de Um Craque, onde a partir do futebol, que considerava a grande arte, constrói um fresco da infância a partir das ruas de Coimbra, dando azo ao impulso satírico que o caracterizava.

São textos, com os do Bookcionário, sempre apontados como exemplos de grande capacidade verbal e de análise e também de que, no caso dele, literatura e jornalismo são inseparáveis. O jornalismo que sempre praticou pertencia à categoria mais elevada de escrita. “A abordagem que faz ao jornalismo é literária”, diz João Paulo Cotrim, destacando reportagens, as crónicas ou as entrevistas “ping-pong”, o Photomaton, n’O Jornal. Eram feitas a gente anónima. Há uma, em particular, a um pastor. Assis Pacheco recordou-a nessa entrevista à Ler: “Vinha com quatro ovelhas e assustou-se porque pensou que eu fosse um fiscal de alguma daquelas coisas que os alentejanos tanto temem. E eu era pior que fiscal. Era uma figura que ele não conhecia de parte nenhuma, com um gravador na mão, e um livro de apontamentos na outra mão e na outra mão a esferográfica, já vamos em três mãos…”

Literatura modo de viver
Eram textos rápidos, limpos, indo ao osso, perseguindo a tal “ideia de perfeição”, nota Abel Barros Baptista. “A literatura faz parte do seu modo de viver e revela-se até nas dedicatórias dos livros e dos poemas e dava aos amigos”, salienta Nuno Costa Santos. E deu muitos. Poemas soltos, poemas-envelope, muitos não estão publicados, mas todos, como todos os textos, resultam de um apurado sentido de observação onde, além da presença do outro, estão traços da sua biografia pessoal o que resulta num conjunto pouco comum e que, olhando apenas para a sua poesia, pode ser traduzido numa espécie de “tríade rara”, segundo Gustavo Rubim, definidora do que é o Assis Pacheco: “Inventividade verbal, capacidade de produzir coisas inesperadas do ponto de vista da escrita e intensidade pessoal com grande sentido de humor”. Há a infância em Coimbra onde nasceu em Fevereiro de 1937, filho de um médico, neto por parte da mãe de um avô galego que marcou a sua identidade; a universidade que sempre tratou com enorme sentido crítico, sobretudo desprezando a tradição coimbrã, onde se formou em Filologia Germânica; a guerra colonial em 1965, alvo de um olhar pícaro em Walt em muitos poemas; o casamento com Rosário Ruella Ramos, em 1963, os seis filhos, os jornais: Diário de LisboaRepúblicaJL, o Musicalíssimo, depois o Sete e a fundação de O Jornal e, mais tarde, da Visão

A escrita de Assis Pacheco era um reflexo da vida e não uma actividade sagrada. Cresceu e fez-se adulto com os poetas da Poesia 61,veio do Simbolismo, tem algum do humor dos Surrealismo, “sobretudo de Alexandre O’Neill”, nota João Rodrigues, foi amigo dos neo-realistas. Não pertenceu a nenhuma destas correntes. Fez a sua síntese, criando um estilo “assis-pachequiano”, como também se lhe refere Costa Santos. Marcado pelo humor e um grande lirismo, características quase nunca juntas e de que Barros Baptista, pelo lirismo, destaca o que considera “um dos melhores poemas sobre a morte”, Então Lá Nos Levaram o Ruy Belo, escrito reagindo à notícia da morte do poeta, em 1978. Foi o mesmo Assis que escreveu O Cu de Maruxa, ele era também o poeta da linguagem desbragada, o bon-vivant, o do manguito com um sorriso rasgado, o que é difícil de seguir no estilo. “Não há muitos seguidores, sobretudo capazes daquele humor”, nota Gustavo Rubim. Francisco José Viegas concorda, mas refere a poesia de Pedro Mexia, “ele tem alguma da ironia do Assis Pacheco, talvez seja o que lhe está mais próximo.   

“Quando morreu estava a escrever dois romances e tinha mais projectos. Em várias conversas com a família dizia que pensava deixar as redacções e dedicar-se à literatura de outra forma”, afirma João Pacheco, o filho mais novo do Assis Pacheco, com 14 anos quando o pai morreu. “Tenho pena de que muitas coisas tenham terminado com essa vida que acabou tão cedo. Entre elas de não ter sido o romancista que era capaz de ser.”

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