Little Party, o orgulho ébrio de mãe

O jogo convida a passarem por uma festa adolescente onde os convidados se procuram artisticamente.

A cultura popular retrata várias vezes pais e filhos adolescentes em hemisférios diferentes, estorvando-se quando se aproximam. São palpitações temporariamente incompatíveis que normalmente se resolvem quando as cabeças se erguem de entre as mãos.

Little Party é um teste à relação entre mãe e filha. O jogo não demora uma hora a ser concluído e decorre numa noite em que a filha decidiu organizar uma festa na cabana familiar ladeada por um bosque. Chegam os amigos, a mãe está presente e já preparou o guacamole. Não seria errado asseverar que estão reunidas as condições onde a faísca melhor desponta.

Contudo, há um inverter da percepção logo nos segundos iniciais quando percebemos que não vamos vestir a pele de Suzanne, a filha, mas da mãe durante aquele trecho de horas. E não estamos perante uma festa nos moldes tradicionais, sendo o intuito da sua organização criar arte pela noite fora, com cada um dos adolescentes à procura da sua veia criativa, a afinar e refinar a sua vocação.

Seja a realização de um filme, a pintura de um quadro ou, no caso da nossa filha virtual, a composição e gravação de música, é uma casa dotada durante uma noite que fervilha: vemos os pontos intermédios das criações ganharem forma, vamos dando sugestões; o som do piano eléctrico de Suzanne ecoa vindo da cave enquanto lhe garantimos que a música está boa, enquanto ela diz que não, ainda não está.

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O nosso papel é ser um espectro durante as festividades. Vamos interagindo com Suzanne e com os seus amigos, contudo é como se saltitássemos entre dimensões diferentes. Nunca há falta de respeito nem pontapés emocionais, porém é notório que Little Party nos coloca numa posição de ir aparecendo e desaparecendo durante o breve continuum noctívago destas vidas em formação.

O pai é parecido com o Robert Redford e não está presente, mas o jogo ensina-nos que fez parte de várias bandas, assim como esclarece que a mãe chegou a pintar durante fases mais jovens da sua vida, antes de se tornar “uma relíquia”. As trocas de diálogos vão sendo intercaladas com tarefas obrigatórias: enviar e-mails aos nossos clientes, passear Mewtwo, o cão da família com nome de Pokémon, ler um livro no sofá e, finalmente, ir dormir. São artifícios que fazem a linha temporal ser ajustada à longevidade do título, mas que servem também para comprovar ao jogador que esta mãe tem vida própria e que não limita a sua existência a vigiar a filha como um falcão.

A jogabilidade sai de cena e não interfere com a mensagem que Little Party quer passar. Além de andarmos pela casa podemos usar uma tecla do teclado para interagir com aquilo permitido pelo jogo. É legítimo jogarmos à apanhada com os clichés esperados numa festa adolescente: álcool, drogas, sexo; esperamos que talvez chegue o descontentamento maternal, a desilusão, o rancor e a culpabilização de termos falhado algures na educação juvenil; é legítimo que quem o espera fique desiludido.

É verdade que Little Party "smells like teen spirit" mas o seu ferver está na constatação que há um termo intermédio entre querer a mãe sempre ao lado e aceder ao descrito no parágrafo anterior. Aqui os adolescentes lutam contra si e contra o mundo que os rodeiam para serem melhores do que eles próprios, para provarem à sua existência que têm um filão à sua disposição, caso o decidam explorar.

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Este turbilhão sentimental não precisa de mensagens escondidas nem que o jogador se perca no cenário para o experienciar. E é um cenário que complementa graficamente o que não se vê: a casa e o bosque que a rodeia, o pequeno lago, são tudo apontamentos que aparentam ter sido desenhados à mão em tons pastel.

O jogo termina inevitavelmente na manhã seguinte à festa e o rastro deixado para trás são as criações: não há copos nem garrafas partidas, não há evidências de um festim destrutivo nem a fomentação de castigos e reprimendas a aplicar. Aquela mãe sobe ao telhado e numa cena que tem mérito para ser memorável vê os amigos a assistirem ao culminar artístico da filha. A maior chapada de luva branca aparece diante dos nossos olhos: pressionar a mesma tecla de sempre, mas desta e última vez para demonstrar somente o nosso orgulho.

Esta obra é uma passagem pelo fogo, contudo é sobretudo a inequívoca afirmação do amor maternal; é uma lição de esperança e a demonstração do perigo da generalização. Às vezes os adolescentes querem espaço apenas para se afirmarem perante o resto das suas vidas.

Little Party foi criado por Carter Lodwick e Ian Endsley e pode ser descarregado aqui, com o jogador a pagar o que quiser.

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