Passos em falso

Grimes: o pedigree indie a tratar a pop como matéria descartável

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Grimes: o pedigree indie a tratar a pop como matéria descartável DR

Art Angels, o novo álbum de Grimes, ou seja, a canadiana Claire Boucher, engana-nos bem. E engana-nos de forma cruel. Depois de três anos de espera, a cantora muito do nosso tempo, tão célebre pela música que grava quanto pela forma como se move nas redes sociais, polemizando, respondendo à polémica ou expondo-se com naturalidade (o que, como sempre acontece nas redes sociais, resulta em ódio online e em declarações de amor assolapado), mostra-nos finalmente o sucessor de Visions, o álbum que, com canções como Genesis ou Oblivion, a transformou numa micro-estrela a caminho de estrela a sério – não por acaso, é neste momento agenciada pela Roc Nation, fundada por Jay-Z e em cujo catálogo encontramos Kanye West, Rita Ora, Rihanna, Shakira ou as Haim.

Art Angels arranca de forma particularmente promissora: uma introdução orquestral em modo fantasia, qual entrada no maravilhoso mundo de Grimes, que desembocará em California: guitarra bailarina, palmas sintetizadas a marcar o ritmo, sintetizador a cobrir a melodia e a voz frágil e encaminhar-nos para a luminosidade do refrão – podia ser canção de Merril Garbus, de tUNE-yArds, e isso é, obviamente, um elogio. Ouve-se depois SCREAM, com a participação da rapper taiwanesa Aristophanes, e tudo se torna ainda mais interessante: guitarra rockabilly, batida digital marcial, apitos soltos no ar, gritos deliciosamente demoníacos e, tudo reunido, um portento de batida globalizada que fará maravilhas na pista de dança. Depois? Bem, depois, Grimes procura um outro tipo de estranheza (e a coisa não corre nada bem). Sabemos do entusiasmo actual da cena independente americana por tudo o que seja manifestação mainstream (de ontem e de hoje), e sabemos como essa ausência de falsos pudores pode resultar em bons híbridos.

Em Art Angels, porém, ouve-se apenas alguém de pedigree “independente” – grava a partir de casa, recusa a ajuda de produtores externos -, a tratar a pop como matéria descartável, indistinta de tanto que luta por um lugar ao sol no sobrepovoado cenário musical actual. Pano de fundo tecno aqui e ali, um toque do eurodance dos 90s a poluir uma ou outra canção, refrões preparados para inclusão em anúncio publicitário, um piscar de olho às Bikini Kill e a Le Tigre no refrão de Kill V. Maim para disfarçar. Quase no final, somos despertados da letargia por Venus fly (com a participação da Janelle Monae), bom pedaço de música esquizóide, com percussão bamboleante, subgraves poderosos, violinos e sintetizador descendo em intervalos regulares como ave de rapina (Prodigy nas proximidades). Não nos salva da desilusão que é Art Angels, mas a juntar ao óptimo início de álbum, deixa-nos qualquer coisa a que nos agarrar.

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