"O terrorismo deixou de ser uma coisa do outro, passou a ser uma coisa minha"

"As pessoas não se deixam abater", diz um professor francês no centro de Paris. "Não podemos deixar de viver mas estaremos mais vigilantes”, acrescenta um ex-habitante dos subúrbios. "Isto assusta muito" e vai levar muitas pessoas a serem olhadas com desconfiança só porque são diferentes.

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Duas mulheres abraçam-se junto ao café “La Belle Equipe”, um dos palcos da carnificina de sexta-feira: a França faz o luto AFP/LOIC VENANCE

Nas ruas de Paris, mais militarizadas, há menos pessoas. Nas casas, neste sábado, muitas se recolheram, coladas às redes sociais, às rádios e aos televisores. “A França inteira está em frente à televisão. A maior parte das pessoas passou a noite acordada. As pessoas estão fechadas nas suas casas.” Paris era uma cidade com medo, apenas para alguns. Para outros, como este professor e director de escola de um estabelecimento de ensino da capital que falou ao PÚBLICO, "o estado de espírito de Paris é hoje como o sentido em 1940 em Londres sob os bombardeamentos nazis".

Em estado de guerra, mas também de resistência: “As pessoas não se deixam abater”, diz embora, no final de uma longa conversa telefónica, deixe um desabafo: “Estas coisas tocam, estas coisas marcam.” Não desaparecem, como não se apagarão da memória os passeios semanais com a filha pequena ao parque no 10º bairro (arrondissement) de Paris, onde até há muito pouco tempo este professor viveu, muito perto da sala de espectáculos Bataclan. Como podem tão contraditórias memórias partilhar o mesmo espaço?

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Na noite de sexta-feira, passeava por Paris, mas não ali, com a mulher e os amigos. Foi uma das pessoas, entre as muitas, que foram acolhidas em apartamentos de “portas abertas”, de pessoas que acolheram quem não podia voltar para casa. No dia seguinte, mantém a calma, não cede ao medo, a não ser o de represálias. Por isso, pede para não ser citado pelo nome.

“Isto assusta. Assusta muito”, diz, por sua vez, Samir Rabas, um habitante de Clichy-sous-Bois, subúrbio de Paris no centro dos motins de 2005. “Não podemos deixar de viver mas estaremos mais vigilantes.” Essa vigilância, em parte, também assusta: na sua cabeça, as pessoas vão misturar origem étnica e religião com terrorismo, diz. “Dentro da expressão Estado Islâmico temos islão.” E o autoproclamado Estado Islâmico reivindicou os atentados. “Desde 2001, com o 11 de Setembro nos Estados Unidos, não tem sido fácil”, resume Samir Rabas numa entrevista por telefone.

Segurança, menos liberdade
Como nos Estados Unidos depois do 11 de Setembro, diz também o professor, “teremos menos liberdades individuais”. E acrescenta: “Mas ao menos estaremos em segurança. Precisamos de liberdade e segurança. Teremos só segurança.”

Carlos Pereira, jornalista e director do Luso Jornal, não fala de sentimento de medo ou maior vigilância, mas antevê que em França a própria definição de terrorismo não volte a ser a mesma. “Deixou de ser uma coisa do outro, passou a ser uma coisa minha. Os terroristas foram atacar os sítios onde eu vou, onde os meus amigos vão. Este atentado tem a ver comigo, porque eu podia estar ali, naqueles locais”, diz também por telefone o jornalista português a viver em Paris há muitos anos.

Desta vez, não foi alvo o satírico Charlie Hebdo “extremista” na sua forma como tratava as questões relacionadas com o islão, diz o professor francês; também não foram alvo um supermercado num bairro judaico ou agentes das forças de segurança, como o foram nos atentados também quase em simultâneo de Janeiro deste ano. “Desta vez, quiseram atacar o povo francês”, conclui o director de escola que também lecciona aulas do 6º ao 10º ano.

Mercearias e comércio de bairro estavam abertos neste sábado, bem como cafés, restaurantes e esplanadas, semelhantes aos que foram atingidos: o Le Belle Équipe, o Petit Cambodge ou o Le Carrillon. Espectáculos e outro tipo de eventos foram cancelados. Os autocarros circulavam e o quadriculado de linhas do metro não foi encerrado mas ao longo dos corredores subterrâneos mais militares caminhavam armados.

Como em Janeiro, quando morreram 12 pessoas, as escolas cumprirão um minuto de silêncio na segunda-feira. Os momentos que seguem serão importantes para as crianças: será preciso dialogar, explicar, como também fizeram professores e directores de estabelecimentos de ensino, junto de alunos, nessa altura, quando a França pensou ter atingido o limite do terror que poderia afratingir dentro das suas fronteiras.

Beber um copo e não voltar para casa
Como explicar tais actos? “Pela estupidez no seu paroxismo. Pelo ódio que pessoas sentem de outras que não pensam como elas. Depois algumas crianças sentirão que isto as pode talvez envolver. E na sua cabeça vão pensar que o pai ou a mãe podem um dia não voltar a casa, como aconteceu com estas pessoas que estavam a beber um copo numa sexta-feira à noite e não voltaram nunca mais a casa.”

Perante os primeiros atentados-suicidas alguma vez perpetrados no país, os franceses tentam não ceder ao ódio ou a considerações sobre o que faltou fazer pelos serviços secretos. Sentem-se impotentes perante a insegurança agora presente em cada esquina.

Nos últimos meses, a polícia neutralizou células ou grupos, identificou ou deteve indivíduos suspeitos, como aquele que planeava atacar a base naval de Toulon, sudeste de França. Foi apenas há cinco dias.

“Era rara a semana em que a polícia não vinha dizer que tinha neutralizado” um grupo, um indivíduo, diz Carlos Pereira. “E estas informações tranquilizavam as pessoas, que pensavam: ‘A polícia está a agir’.”

Depoimento: “Só no segundo tempo [do jogo] é que soube o que estava a acontecer”

Ao mesmo tempo, as notícias sobre ataques prevenidos adensaram os receios da iminência de um outro mais grave e imprevisível. “Toda a gente sabia que um atentado podia acontecer”, diz também o professor, que prevê novos ganhos da extrema-direita nas eleições regionais de Dezembro e “um revés para os valores republicanos”.

A campanha eleitoral foi suspensa. E neste sábado, museus, instalações desportivas de Paris e arredores, grandes armazéns do coração da cidade como o Printemps ou as Galerias Lafayette fecharam portas, bem como todas as escolas com actividades ou aulas ao sábado.

Onde agora vive, mais distante da capital, Samir Rabas sente que está menos exposto a actos como os que aterrorizaram Paris, na sexta-feira à noite, e longe da presença, repressão e rusgas policiais, que “começaram e vão continuar a ter lugar” nos subúrbios, como Clichy-sous-Bois. Era aqui que vivia em 2005, quando ajudou a criar a associação Assez-le-Feu depois dos motins detonados pela morte de dois adolescentes electrocutados quando se escondiam da polícia que os perseguia.

Armas sofisticadas nos bairros
Foi nesse ano também que no início de um jogo entre a França e a Argélia, se ouviram assobios ao hino francês. “O início deste tipo de coisas foi há dez anos”, diz o professor. Nos últimos anos, o Estado fez grandes investimentos nos bairros dos subúrbios, para melhorar as condições de vida, explica. Mas o desespero socio-económico não desapareceu. Como não desapareceu o sentimento de exclusão de jovens dos bairros. “A radicalização foi a via para uma solução”, diz.

Nos subúrbios de Paris ou Marselha, muito mudou, por outras razões, diz Samir Rabas. Criaram-se mercados paralelos, que cruzam armas e droga, com o terrorismo. “Com o fim do conflito nos Balcãs, as armas chegaram aos subúrbios e foram revendidas a terroristas. Pouco a pouco, em Marselha, por exemplo, aquele que tinha uma pequena pistola tem hoje uma Kalashnikov.”

O debate não pode centrar-se apenas na diferença entre os que se sentem e os que não se sentem franceses, diz Samir. “Não é porque alguém se sente excluído que será um terrorista. Esse é um factor que conta mas não é o factor determinante.” Quem comete estes actos são “loucos”. “E loucos há em todo o lado.”

Samir Rabas fala dos “olhares que as pessoas vão lançar a outras”. “Desejo que haja coesão humana, e que as pessoas não lancem olhares a outras só porque são diferentes. Não se deve mudar o olhar sobre o outro porque algumas pessoas criaram, para a França, este drama.”

Com ou sem clivagem na sociedade, certo é que o professor ouviu várias vezes os seus alunos, entre os 11 e os 15 anos, rejeitarem ondas de solidariedade e dizerem “Eu não sou Charlie” nas semanas que se seguiram aos atentados de Janeiro. E mais recentemente, diz, é comum ouvir muitas pessoas rejeitarem a ideia de oferecer aos refugiados as oportunidades que muitos franceses não têm.

Depois do 13 de Novembro, antecipa "uma reacção de ódio” de algumas pessoas em França, uma reacção que espera seja compreendida. Já antes dos atentados, os franceses se sentiram “abandonados” por países aliados quando a França defendeu uma resposta firme contra o Estado Islâmico, lembra. Por isso assistiram, incrédulos, à declaração do Presidente Barack Obama, na sexta-feira à noite, oferecendo o apoio dos Estados Unidos para o que fosse preciso. Os franceses sabem que têm muitos problemas internos a resolver mas estarão agora na expectativa de ver a comunidade internacional “assumir as suas responsabilidades”, diz o professor. "É preciso impedir o Estado Islâmico de se desenvolver."

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