Portugal à esquerda

Nos últimos quatro anos de austeridade cantou-se muitas vezes a “Grândola, Vila Morena” para conjurar o espírito de resistência e invocar a possibilidade de união à esquerda. Ontem, o canto da Grândola foi diferente. Falou-nos já de um sentimento de esperança e orgulho. O povo de esquerda tomou posse da alternativa política e reclamou-a como sua. A esquerda vai precisar desse sentimento. Poder sem povo não passa de cargos inúteis.

Há muito que a sociedade portuguesa está madura para um governo ancorado à esquerda. Uma parte da direita continuará a negá-lo. Ao tempo de espera por uma decisão do Presidente da República, à pressão por parte do Partido Popular Europeu, acrescentar-se-á a incerteza propalada por comentadores: o que acontecerá quando os sindicatos começarem a pedir aumentos? o que acontecerá quando os partidos de esquerda tiverem opiniões diferentes? As perguntas são legítimas. Mas parece que os comentadores só admitem um tipo de resposta, que é a resposta pessimista. Não admitem que a sociedade civil, os sindicatos e o povo de esquerda não sejam uma força de bloqueio. Não admitem que as diferenças entre os partidos à esquerda, aliás bem conhecidas sobretudo pelos próprios, não possam dar um resultado de soma positiva.

E se maioria social, política e parlamentar à esquerda — que se confirmou ontem — tiver mais capacidade de mudança nos próximos anos do que a maioria de direita que a precedeu?

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A esquerda portuguesa recuperou ontem a sua função transformadora e solidária. Essa não pode se pode realizar sem duas coisas: 1) capacidade de respeitar as diferenças 2) uma forte base social de apoio. Há muito onde aplicar esse potencial.

Um governo de esquerda pode acertar naquilo que foi chamado pomposamente de “reforma do estado” — e onde a direita falhou clamorosamente. Uma verdadeira reforma do estado, vista pela esquerda, pode ser feita por uma maior abertura da administração pública aos cidadãos, por uma maior transparência e responsabilização política, e pela reintrodução do debate que falta, que é o da regionalização. Essa é uma reforma do estado que PS, BE e PCP podem pensar em conjunto, e para a qual devem envolver todo o parlamento.

Um governo de esquerda deve empenhar-se na construção de um modelo de desenvolvimento para o país com pilares muito simples: emprego com direitos e dignidade para todos, incorporação de conhecimento e tecnologia, reindustrialização verde, reforço da capacidade produtiva e cooperativa. Aí os sindicatos são aliados, e não obstáculos.

Um governo de esquerda vai certamente empenhar-se no combate às desigualdades e à pobreza. Bastará aplicar os acordos ontem assinados para termos o arranque de legislatura mais produtivo de sempre a esse nível.

Finalmente, um governo de esquerda deve dar forças a Portugal para os grandes desafios do século XXI: lutar por uma União Europeia democrática, uma globalização justa e um planeta sustentável.

À descrença e à incerteza de uma parte da sociedade, ao orgulho e esperança da outra parte, responde-se da mesma forma: com ação política, transformadora e solidária.

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