A cultura é dos subalternos

Temos os jornais, a televisão por satélite e por cabo, o Google, o facebook, estamos imersos no mundo da informação e a esfera pública alargou-se tanto que já engloba territórios consideráveis do espaço privado. No entanto, ao contrário do que tinha sido previsto e anunciado, é hoje evidente que nada disto permite a realização da ideia de uma sociedade civil a proliferar por si mesma, nem de uma esfera pública definida pela transparência e pela ideia emancipadora de socialização da cultura. Fixando-nos em latitudes muito portuguesas, podemos hoje perceber que há uma preocupante hegemonia de uma subcultura e de tudo o que opera no sentido do abaixamento e da degradação. Refiro-me a este curioso  fenómeno: o discurso e o debate, os temas e as questões que circulam rapidamente e em larga escala no espaço público são determinados pelos centros de irradiação de uma cultura acrítica e de massa, aquela que – escreveu uma vez um heterodoxo matemático e filósofo francês, Gilles Châtelet – se aplica a “devorar o Diferente, para cagar o Mesmo”. Ou seja, são os escritores subalternos, os animadores da televisão e os profissionais da idiotice impressa ou teledifundida, munidos de um vasto arsenal de instrumentos, que se tornaram os grandes mediadores. É através deles que se acendem as discussões políticas, ideológicas, culturais, à medida do exíguo espaço mental e da lógica do fait divers de onde nasceram. Por isso, parece que estamos sempre imersos numa tagarelice de filisteus. Esta guarda avançada colocou na sombra e em lugar recuado as elites universitárias das ciências sociais e humanas (as ciências exactas, por razões explicáveis, foram sempre avessas à “publicidade”, no sentido mais próprio do termo). Não é que a virtude e o saber estejam apenas desse lado. Longe disso, e devemos ser muito críticos em relação a qualquer reivindicação de superioridade e exclusividade vinda daí. Mas certamente que também não estão em exclusivo do outro lado, como parece o caso. Há hoje um défice enorme, em Portugal, da palavra vinda do interior dos vários campos do saber, seja porque ninguém a quer ouvir, seja porque as condições adversas obrigaram a uma retracção. Veja-se um exemplo que me impressionou bastante: este Verão, no final de Agosto, morreu um dos maiores cientistas sociais que Portugal alguma vez teve, o sociólogo Hermínio Martins, e em termos públicos o silêncio foi quase total. Aquele homem morreu quase como um desconhecido nos meios “profanos”. Os media gostam é de sociólogos espontâneos, de atrevidos repórteres sociais ou de quem faz sociologia para uso jornalístico. E assim se escancararam as portas aos “grandes redutores”. Mas, mais do que um retracção forçada, existe mesmo por parte destas elites uma tendência para entrar na tagarelice e fazer o seu jogo. Há de facto demasiada mistura e indistinção entre a alta cultura e esta subcultura produzida ou induzida pelos media, de tal modo que deixámos de saber quem legitima quem e a que campo pertencem certos protagonistas. E há, muitas vezes, a incompreensão deste facto: enquanto um “especialista” (ou alguém a que noutros tempos chamaríamos “intelectual”) não pode, sem ficar diminuído no seu prestígio, ser apanhado pelos seus pares no discurso ignorante ou fraudulento, o indivíduo da classe mediático-populista nunca é destituído, mesmo que insista em dizer idiotices. Ele mantém-se por força de uma imagem e de um “estilo”. Pode ser um exemplo de estupidez, mas a estupidez, disse uma vez Schiller, nem os deuses a podem combater. 

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