Comunistas e socialistas: um olhar sobre as alianças

O PCF exercia uma função tribunícia que perdeu depois para a Frente Nacional de Le Pen

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Há ocasiões em que vale a pena revisitar a história política dos outros para repensar a nossa. A iminência de um acordo de governo entre o Partido Socialista, o Partido Comunista Português e o Bloco de Esquerda é o pretexto para uma breve incursão pela França dos longínquos anos 1960-80. Neste texto, interessa-me apenas a função política do Partido Comunista Francês (PCF) e a sua relação com os socialistas.

Quase tudo separa os dois países e as duas épocas. A França vivia então, embora por pouco tempo, os “Trinta Gloriosos” da expansão contínua da economia e do bem-estar. Hoje atravessamos a era das vacas magras. Quem dominava a esquerda francesa não era o Partido Socialista (PS), refundado por François Mitterrand em 1971, mas o PCF. E as nacionalizações eram ainda, e não só em França, a trave-mestra doutrinária da esquerda socialista. Por tudo isso é perigoso fazer analogias. Interessante é relembrar os factos no seu contexto. A experiência de Mitterrand não é um modelo exportável mas ensina alguma coisa sobre o modo de olhar as alianças.

Para que serve o PC?
Em 1981, o politólogo francês Georges Lavau publicou um livro intitulado: Para que serve o Partido Comunista Francês? (À quoi sert le Parti Communiste Français?, Fayard). Nele desenvolve uma análise que remonta a 1969 sobre a função tribunícia do PCF. O partido pretende representar a classe operária, mas a sua influência e o seu poder são essencialmente negativos, tal como os do “tribuno da plebe” em Roma, limitado ao poder de veto. O PCF defende os desfavorecidos, dá voz às suas reivindicações, organiza o seu protesto, recolhe os seus votos mas não pode nem quer governar. A função tribunícia dá aos militantes e eleitores o sentimento de serem representados, o que é uma forma de integrar as classes pobres na sociedade francesa.

O recurso à função tribunícia seria a alternativa que os dirigentes do partido adoptam perante a incapacidade de exercer ou tomar o poder. Se as outras forças políticas excluem o PCF do poder, por razões ideológicas ou estratégicas, Lavau insiste na deliberada auto-exclusão praticada pelos hierarcas comunistas, graças à sua fixação dogmática no modo de organização leninista, na ligação à URSS e no papel dirigente da classe operária e do partido nos processos de mudança social — “o que impede as alianças políticas indispensáveis ao partido para atingir um poder positivo”.

Quando se levanta a questão, os dirigentes esquivam-se. A retórica da “construção do socialismo” permite ao PCF recusar todas as tentativas de exercer um “poder real e positivo na sociedade tal qual ela é”. O partido procura sobretudo sobreviver e reforçar as suas posições. Mas, ao mesmo tempo, condena a classe operária ao isolamento e a “um fantástico desperdício da sua energia e da sua inteligência”. Os dirigentes prefeririam permanecer no “esplêndido isolamento” que, na opinião de Lavau, levaria ao declínio.

Mitterrand
Mitterrand era um republicano de esquerda, não um socialista. Assumiu a liderança da esquerda em 1965 quando forçou o general De Gaulle a uma segunda volta nas presidenciais. No congresso de Epinay de 1971 refundou o Partido Socialista.

A sua análise foi clarividente. O sistema instaurado pela V República em 1958 condenava a esquerda à oposição, devido à hegemonia do PCF que impedia uma alternativa. Por outro lado, o poder tinha passado a residir na Presidência da República. Mitterrand fixou como meta construir um partido e um sistema de alianças que lhe permitissem o acesso à presidência. Propôs um método, escreve o politólogo Laurent Bouvet: “Fazer concorrência frontal ao PCF no seu próprio terreno ideológico da ruptura com o capitalismo, a fim de [o PS] assumir o lugar de primeiro partido da esquerda — portanto capaz de representar toda a esquerda numa eleição presidencial contra a direita.”

Após um sinuoso processo negocial, o PS, o PCF e os Radicais de Esquerda assinam a 26 de Junho de 1972 um “programa comum”. É o ponto de partida da “União da Esquerda”. Mitterrand convence o PS a aceitar uma plataforma que tornasse impossível a sua recusa pelo PCF: subida dos salários, redução do horário de trabalho, segurança de emprego, generalização da Segurança Social e muitas outras reformas. E a cereja no bolo: a nacionalização de nove sectores industriais estratégicos e a intervenção na banca. Acenava ainda com “uma política de paz” que previa a prazo a dissolução da NATO e do Pacto de Varsóvia. O programa será várias vezes alargado.

A União da Esquerda interessava ao PCF na medida em que os acordos de desistência mútua pudessem reforçar a sua posição parlamentar. Mas só a concebiam sob sua hegemonia. Era o tempo em que falavam “em depenar as aves de capoeira socialistas”. Sucedeu o contrário. Depressa o PS ultrapassará eleitoralmente os comunistas. Mitterrand contestará até “o direito de propriedade do PCF sobre a classe operária”. Após as legislativas de 1978, a União é rompida, por radicais e comunistas.

Mitterrand é eleito Presidente a 10 de Maio de 1981. Os comunistas, que não queriam ir para o poder com uma relação de forças favorável ao PS, quebraram o tabu e nomearam quatro ministros. Dissolvida a Assembleia, as legislativas são um terramoto: o PS obtém na primeira volta 36% dos votos contra 16,1% do PCF e, na segunda, a maioria absoluta de 266 deputados contra 44 dos comunistas.

O primeiro governo de Mitterrand, de Pierre Mauroy, cumpre as promessas eleitorais, com uma chuva de medidas sociais e económicas, desde o aumento de 10% do salário mínimo às nacionalizações. Mas a conjuntura económica mudara já. Em Março de 1983, com o franco sob ataque nos mercados, Mitterrand dá razão ao ministro das Finanças, Jacques Delors, e anuncia “a viragem do rigor”. Foi um choque para a maioria da esquerda. Os comunistas ficarão no governo até 1984. O PS vai abandonar, primeiro nos factos e depois no discurso, a “ruptura com o capitalismo”.

Ao contrário do PS, o PCF não se soube adaptar às mudanças da sociedade. Cedo ficou sentado entre duas cadeiras. O declínio tornou-se inexorável. Cedeu, dramaticamente, a função tribunícia à extrema-direita de Le Pen. O seu último candidato presidencial, Marie-George Buffet, terá menos de 2% em 2007. Ao contrário do PCF, o Partido Comunista Italiano decidiu transformar-se num partido social-democrata com vocação de governar. O Partido Comunista Português tirou a lição inversa. Passadas as veleidades do PREC, reassumiu a opção tribunícia e reforçou a rigidez doutrinal. E sobreviveu. São os efeitos disto sobre a nova “maioria de esquerda” que tentarei discutir noutro texto.

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