O espaço para as vítimas de violência doméstica que “infelizmente” se revelou um sucesso

"Tudo o que conseguimos imaginar já passou, lamentavelmente, por aqui", diz a psicóloga Inês Carrolo sobre o Espaço Júlia, que funciona desde Julho junto ao Hospital dos Capuchos, em Lisboa. Mais de 150 vítimas já passaram por lá.

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No Espaço Júlia, agentes da PSP e técnicos de acção social prestam às vítimas um apoio que se pretende integrado Daniel Rocha

Desde que o Espaço Júlia abriu as portas, no fim de Julho, já foram atendidas neste equipamento de apoio às vítimas de violência doméstica, na freguesia lisboeta de Santo António, mais de uma centena e meia de pessoas. As entidades envolvidas no projecto são unânimes em fazer uma avaliação positiva, mas o presidente da junta tem um lamento: que este se tenha revelado, “infelizmente”, “um equipamento mais do que necessário”.

“Infelizmente faço um balanço muito positivo. Temos tido muitos casos”, diz Vasco Morgado. Ao PÚBLICO, o presidente da Junta de Freguesia de Santo António confessa que aquilo que gostaria de poder dizer era que o Espaço Júlia não teve procura e que por isso ia ser encerrado para dar lugar a um qualquer estabelecimento comercial.

Mas a realidade é outra, como atestam a subcomissária Aurora Dantier, da 1.ª Divisão do Comando Metropolitano de Lisboa (Cometlis) da PSP, e Inês Carrolo, coordenadora do Departamento de Acção Social da junta de freguesia. Ambas estão envolvidas neste projecto desde antes de ele se ter tornado uma realidade e partilham a convicção de que o Espaço Júlia demonstrou ter grande utilidade.

“As vítimas precisavam de ter um espaço só para elas”, sublinha a subcomissária, constatando que o número de pessoas atendidas “tem vindo sempre a aumentar”. “As pessoas começam a ter mais conhecimento de que o espaço existe e as entidades também”, refere.

Segundo dados facultados ao PÚBLICO pelo Cometlis, em Julho foram elaborados oito autos de notícia (sendo que este equipamento só abriu na última semana do mês), em Agosto 52, em Setembro 42 e em Outubro outros 52. A esses números, que traduzem as queixas que foram apresentadas, há que juntar mais de 110 “aditamentos”, que como explica Aurora Dantier tanto podem dizer respeito a uma simples mudança de morada ou telefone da vítima queixosa como a um novo episódio de violência.

Quanto à forma como as pessoas chegam ao Espaço Júlia, a subcomissária constata que são quase tantas as que são levadas por um carro patrulha da PSP como aquelas que o fazem pelos seus próprios pés, seja porque ouviram falar neste equipamento nalgum meio de comunicação social, porque algum familiar lhes contou da sua existência ou porque conhecem alguém que já aí foi atendido. A esses casos há que juntar os das vítimas encaminhadas por hospitais e por instituições particulares de solidariedade social ou organizações não governamentais.

Pensado inicialmente para dar resposta aos casos vividos em Santo António, Santa Maria Maior, Arroios e Misericórdia (por serem as quatro freguesias lisboetas abrangidas pela 1.ª divisão), ao Espaço Júlia têm-se dirigido “muitas, muitas, muitas” pessoas de fora dessa área e mesmo de fora do concelho. Segundo Aurora Dantier, foram já atendidas vítimas vindas “de Sintra, Vila Franca de Xira, margem Sul, Oeiras, Cascais e Amadora”.

“Vem muita gente de fora”, atesta Inês Carrolo, que lembra que este é um equipamento “inédito”. No Porto existe, desde 2013, o Gabinete de Atendimento e Informação à Vítima, no qual trabalham um chefe e 16 agentes da PSP. Já o espaço aberto este ano em Lisboa, sublinha a psicóloga, tem a particularidade de juntar debaixo do mesmo tecto elementos policiais e técnicos de acção social, oferecendo assim às vítimas uma resposta que se pretende integrada.  

Como explica Inês Carrolo, esses técnicos pretendem no essencial ser “agentes facilitadores”. “Fazemos a intervenção na crise e a preparação do depoimento policial” e “o encaminhamento para as juntas de freguesia, para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, para entidades de apoio à vítima como a APAV, a AMCV e a UMAR e para acolhimentos de emergência”.

A coordenadora do Departamento de Acção Social da junta acrescenta que a presença dos técnicos é também importante para determinadas vítimas, como crianças ou vítimas de violência sexual, para quem “é mais fácil falar sem ter a pressão da farda”. À lista de mais-valias, Aurora Dantier acrescenta uma outra vantagem: o facto de agentes policiais e técnicos de acção social conseguirem na maioria das vezes recolher a informação “ao mesmo tempo” faz com que os queixosos não tenham que repetir a sua história, o que permite “minimizar a dupla vitimização”.

"Um espaço para chorar"
A subcomissária não tem dúvidas de que neste novo equipamento tem sido possível “melhorar a qualidade do atendimento”. “Não estamos com pressa a olhar para o relógio, temos tempo para ouvir as pessoas”, sublinha, contrapondo com as esquadras, onde o atendimento “é muito a correr, com muita gente a entrar e a sair”. No Espaço Júlia, que tem dois gabinetes de atendimento e uma sala para os técnicos, Aurora Dantier acredita que as vítimas se sentem “seguras” e que sabem que aí têm, se for caso disso, “um espaço para chorar”.

“É um espaço que permite privacidade”, diz por sua vez Inês Carrolo, acrescentando que há uma preocupação de garantir que às vítimas são dados “os mínimos”, que “podem fazer toda a diferença numa altura de fragilidade”. Quem se dirigir a este equipamento, garante a psicóloga, não daí sairá com frio ou fome, podendo receber as peças de roupa de que necessita ou usufruir de uma sopa quente.

“Às vezes as vítimas chegam aqui sem nada, só com a roupa no corpo”, lamenta Aurora Dantier, reconhecendo que tomar a decisão de ir ao Espaço Júlia participar uma agressão é apenas um passo daquele que é o “calvário” das vítimas de violência doméstica. Em média, lembra, quem sofre agressões em casa “faz sete a oito tentativas para quebrar o ciclo”.    

Tanto a subcomissária como Inês Carrolo fazem questão de sublinhar que cada caso é um caso e que é preciso atender às especificidades de cada vítima e de cada agressor. “Tudo o que conseguimos imaginar já passou, lamentavelmente, por aqui”, conclui a psicóloga, que considera que se tem vindo a assistir nos tempos mais recentes “um aumento da perversão” por parte dos agressores.  

O Espaço Júlia está aberto 24 horas por dia, 365 dias por ano, na Alameda de Santo António dos Capuchos, junto ao hospital com o mesmo nome, num espaço cedido pelo Centro Hospitalar Lisboa Central. A designação do equipamento pretende ser uma homenagem a Júlia Santos, uma idosa de 77 anos que foi morta pelo marido durante uma discussão ao pequeno-almoço.  

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