Quem tem medo de um governo de gestão?

Sendo péssimo, o governo de gestão tem esta inestimável vantagem: garante eleições daqui a cinco meses.

Se o governo da coligação cair no Parlamento na próxima semana, Cavaco Silva deve convidar António Costa para formar governo. Mas o que ele não deve fazer, porque seria uma traição ao seu mandato, é entregar as chaves do Palácio de São Bento em troca de um acordo a cair da tripeça. O acordo da esquerda não pode ser um Frankenstein keynesiano-leninista colado a cuspo. O acordo da esquerda não pode ser uma fraude intelectual. O acordo da esquerda não pode ser um discurso de Miss Universo, composto em exclusivo por parágrafos intumescidos de piedade pelos pobrezinhos e suspiros por um mundo melhor.

Se o acordo da esquerda for apenas um conjunto de intenções mal-enjorcadas e de promessas não-contabilizadas, sem metas concretas para o défice e ignorando o caderno de encargos que o próprio presidente da República deixou inscrito no seu último discurso (nomeadamente o respeito pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento e o cumprimento do Tratado Orçamental), Cavaco Silva não pode, de forma alguma, dar o seu aval a tal projecto de governo, ainda que ele venha a tilintar com o apoio maioritário do Parlamento.

A razão é simples. Se é verdade que não compete ao presidente da República definir o programa de governo, compete-lhe sem dúvida alguma impedir que três partidos – e muito em particular o PS – possam sequestrar no parlamento os votos dos portugueses. Existe certamente alguma elasticidade para os partidos poderem desviar-se dos seus compromissos eleitorais e de, em função dos resultados e da própria realidade, ensaiaram algumas aproximações que não haviam sido explicitamente contempladas durante a campanha – daí eu considerar que o PS tem inteira legitimidade para procurar acordos à sua esquerda. Mas, como é óbvio, têm de ser colocados limites a essa elasticidade e àquilo que os deputados do PS podem fazer com os seus votos. Não vale tudo. Em troca de um projecto de poder, um partido não pode implodir todo o seu programa eleitoral e as promessas mais básicas que fez ao povo português – e que passam, desde logo, por um orçamento equilibrado e pelo cumprimento escrupuloso dos limites do défice, que ninguém percebe como podem ser alcançados com mais despesa e menos impostos. Deitarmo-nos com António Costa e acordarmos com Jeremy Corbyn é ir longe demais. Cavaco Silva está lá para o impedir.

Aliás, depois de ter andado a fazer-se de morto durante o consulado de José Sócrates, Cavaco não pode voltar a fazer-se de morto durante o pré-consulado de António Costa. Se vivemos num regime semipresidencial, é precisamente para que o presidente possa exercer os seus poderes em momentos como este, resistindo a uma parlamentarização radical do regime, que não seria outra coisa se não uma partidarização absoluta do sistema político português, com 230 deputados devidamente cerceados pela disciplina de voto a marcharem à voz do dono. Ainda que essa voz estivesse a sabotar, por razões puramente estratégicas, o mandato que lhe foi confiado.

Não tenho a menor dúvida de que um governo de gestão seria péssimo para o país. Mas se ele tiver de ser o preço a pagar para impedir o sequestro do voto dos portugueses durante quatro anos, Cavaco não deve hesitar. Sendo péssimo, o governo de gestão tem esta inestimável vantagem: garante eleições daqui a cinco meses. Se o acordo da esquerda for apenas um logro e uma palhaçada para português ver, António Costa não pode ser primeiro-ministro.

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