Polónia: reaccionário Kaczynski faz política de esquerda

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A direita nacionalista e eurocéptica venceu as eleições polacas de domingo com um programa económico de “esquerda”. Pela primeira vez na Polónia democrática há uma maioria absoluta. A esquerda desapareceu do Parlamento. Um dos primeiros efeitos será o alargamento da “frente eurocéptica” na UE e da fractura entre o Oeste e o Centro-Leste europeus. A polémica da imigração não foi decisiva pois os dados estavam lançados há mais tempo.

A figura do vencedor, Jaroslaw Kaczynski, arrasta uma pesada carga histórica. Os gémeos Lech e Jaroslaw Kaczynski governaram a Polónia entre 2005 e 2007 e Lech foi Presidente desde 2005 até à sua morte, num desastre de avião, em Abril de 2010. Representando a direita católica integrista e o nacionalismo tradicional polaco, mostraram pulsões autoritárias, tentando subordinar a Justiça e os media. Celebrizaram-se por uma “caça às bruxas” a que chamaram a “purificação da Polónia”, dirigida contra os pós-comunistas e contra a elite católico-liberal e europeísta que liderou a transição do comunismo para a democracia. Praticaram uma política de “guerra civil permanente”. No plano externo, seguiram uma linha atlantista, designando dois inimigos: Rússia e Alemanha.

Não basta crescer

A Plataforma Cívica (PO), do liberal Donald Tusk, derrotou o partido dos Kaczynski, Lei e Justiça (PiS), nas legislativas de 2007. Mas o “desgaste do poder” da PO era patente desde 2014. Tusk cedeu a chefia do governo a Ewa Kopacz, mas a PO continuou a descer nas sondagens e perdeu as eleições regionais. A derrota tornou-se certa com a vitória do candidato do PiS, Andrzej Duda, nas presidenciais de Maio passado. Os polacos votaram na “mudança”.

Más notícias económicas? Não, porque “a Polónia é a success story da economia europeia”. Cresce desde a “terapia de choque” de 1990-92. Junta vários trunfos: sólida rede bancária, sistema fiscal atractivo, forte investimento estrangeiro e um mercado de trabalho flexível. Desde 2008, o PIB registou um crescimento acumulado de 25%.

O crescimento fez subir as expectativas e as exigências sociais, tal como a sensibilidade às desigualdades. As prestações sociais do Estado — sobretudo na saúde e nas pensões — são muito inferiores às da Europa Ocidental. Os jovens temem mais pelo futuro. A elite liberal e pró-europeia é acusada de “arrogância”.

Kaczynski percebeu tudo. O seu programa é simples: chegou a altura de os polacos tirarem proveito de quase 25 anos de crescimento económico ininterrupto. Que promete para os próximos “100 dias”? Aumentar as prestações familiares mensais em 120 euros por filho. Baixar a idade da reforma de 67 anos para 65, para os homens, e 60 para as mulheres. E ainda: um salário horário mínimo, medicamentos gratuitos para os maiores de 75 anos, menos IRS.

O seu plano propõe-se mobilizar 330 mil  milhões de euros para o desenvolvimento das empresas polacas, graças a novas taxas sobre as operações bancárias e os supermercados. Quer reforçar o controlo do Estado sobre a economia e resistirá a Bruxelas se ultrapassar os 3% do défice orçamental. Em compensação, promete estímulos fiscais e uma política monetária liberal.

O analista financeiro Witold Orlowski declara à AFP: “Estou convencido de que o PiS vai cumprir as promessas mesmo se eles ultrapassarem a capacidade da economia. Os problemas aparecerão dentro de meses.” Mas a banca polaca aprecia a maioria absoluta do PiS como garantia de “estabilidade política”.

Do ponto de vista político, Kaczynski fez uma manobra inteligente. Promoveu uma nova geração de políticos menos “rebarbativos” que os seus antigos colaboradores, como Duda ou a primeira-ministra Beata Szydlo. Reserva para si o papel de estratego. Quer entrar na História e afastar-se da gestão corrente. Passou a era da “purificação da Polónia” porque o comunismo tornou-se memória.

Morte da esquerda

Muito do que se passa desde 1989 traduz uma luta entre “duas Polónias”, diz o politólogo Jacques Rupnik, especialista da Europa Central e do Leste. “De um lado, a Polónia Ocidental das grandes cidades, com um meio urbano educado, que muito beneficiou da transformação económica e da ancoragem europeia e era a base de apoio da Plataforma. Depois, há a outra Polónia, mais Leste e mais rural, a que menos ganhou com a Transição. Mas é uma clivagem mais cultural do que económica.” A novidade foi que, pela primeira vez, o PiS venceu nas cidades do Oeste.

Não se trata de um combate entre esquerda e direita. Uma parte da esquerda era conotada com os pós-comunistas, outra com o centro-esquerda moderado, liberal e europeísta, saído da dissidência e que foi representado pela União para Liberdade, de Bronislaw Geremek e Tadeusz Mazowiecki. Foram eles que liberalizaram a economia. Anota Rupnik: “O PiS de Kaczynski está à sua esquerda na política económica e social. É uma direita nacional mais estatista e mais social. Eis o paradoxo que explica o eclipse da esquerda”. A actual luta “é entre a direita liberal da Plataforma e a direita conservadora do PiS.” A esquerda foi varrida da paisagem parlamentar, “o que é algo de novo e simbolicamente forte”.

Consequências

Que implica “o regresso de Kaczynski”? Há dois aspectos que merecem ser sublinhados. O primeiro, a tentação autoritária, é ainda uma incógnita. Permanece a vontade de concentrar o poder no executivo e de criar o “Estado forte” que os gémeos projectaram há dez anos. A dificuldade é que o PiS tem a maioria absoluta mas está longe dos dois-terços necessários para uma revisão constitucional. Sob muitos pontos de vista, há uma grande analogia entre Jaroslaw Kaczynski e o autoritarismo do húngaro Viktor Órban.

O segundo aspecto é a viragem na política europeia de Varsóvia, até agora marcada por uma estratégia coerente e clara. Endurecerá a posição polaca em relação à Ucrânia e crescerá a hostilidade a Putin. Mas também ressurgirá um soberanismo agressivo em relação à UE e à Alemanha, e também à França. Kaczynski tentará mobilizar o Grupo de Visegrado (Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia) contra Bruxelas. Mas uma coisa os divide: a questão russa.

“O PiS dará primazia ao interesse nacional em detrimento dos interesses europeus. Quer uma União mais económica e menos política”, declara à AFP o politólogo Kazimierz Kik. “Unir-se-á ao grupo de formações europeias, tanto as de direita, como a Frente Nacional francesa, como as de esquerda que querem reduzir o poder de Bruxelas.” Procurará aliados, sobretudo em Londres, para reformar os tratados europeus e alargar as possibilidades de op-out. A crise dos refugiados será o primeiro tema de confronto.

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