Ele avisou...

O Presidente agiu com a total e absoluta autonomia que a Constituição lhe dá. O Presidente não é um funcionário administrativo.

O Presidente da República tem toda a legitimidade constitucional, eleitoral e política para indigitar Passos Coelho como primeiro-ministro, como teria toda a legitimidade constitucional, eleitoral e política de decidir indigitar já António Costa primeiro-ministro, no caso de lhe ter sido apresentado um acordo de governo sólido, como terá toda a legitimidade constitucional, eleitoral e política de decidir não indigitar no futuro um governo de Costa, que, após uma moção de rejeição do programa do Governo da coligação, venha a ser suportado parlamentarmente pelo BE, pelo PCP e pelo PEV.

É evidente que o procedimento normal a seguir era indigitar como primeiro-ministro Passos Coelho, o líder partidário que saiu vencedor das eleições. Cavaco pode até ter cometido o erro de apelar à dissidência dos deputados e o erro de avaliação política das consequências que podem advir de estabelecer linhas vermelhas para uma indigitação que excluem partidos como o BE e o PCP. Isto, porque a clarificação ideológica que repetiu divide claramente os campos e estabelece um confronto político que poderá dar mais força e mais solidez aos que defendem que há espaço para a maioria de esquerda governar.

Mas fê-lo numa clara atitude de frontalidade política a que tem direito e que não tem nada de novo, embora pela dureza dos termos possa parecer inédita. É bom não esquecer que já em 2013, quando da crise governativa da demissão “irrevogável” de Paulo Portas, Cavaco forçou negociações entre o que se convencionou chamar "partidos do arco da governação". E, em 6 de Outubro, quando encarregou Passos de iniciar negociações para formar governo, Cavaco foi claríssimo a estabelecer a fronteira do que aceitava, excluindo os partidos anti-NATO e que admitem a saída do euro e da União Europeia, isto quer dizer que excluiu PCP e BE.

Como Presidente, é facto que Cavaco não deve defender que há deputados eleitos pelo povo nas urnas que têm menos direitos do que outros de servirem de suporte parlamentar a um governo. Mas o Presidente agiu com a total e absoluta autonomia que a Constituição lhe dá. O Presidente não é um funcionário administrativo. Por um lado, porque tem legitimidade eleitoral para agir e decidir. Foi eleito, com base num posicionamento ideológico e num programa político, por voto directo como Presidente da República para exercer um mandato que tem contornos constitucionais claros. Por outro lado, no regime semipresidencialista estabelecido pela Constituição, há dois momentos em que o Presidente tem o poder discricionário. É quando indigita o primeiro-ministro, em que a única regra a que está obrigado é a de decidir depois de “ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais”. E é quando pode usar a chamada "bomba atómica constitucional", ou seja, o poder de dissolução do Parlamento e de convocação de eleições.

Repetimos, podemos considerar que é politicamente um erro o Presidente vir a rejeitar um governo de esquerda apoiado pelo BE e pelo PCP, embora o possa legalmente fazer. E é bom não esquecer que a situação não é inédita. Recorde-se que, em 1987, o então Presidente Mário Soares rejeitou dar posse a um governo liderado pelo PS e apoiado pelo PRD e pelo PCP e chefiado por Vítor Constâncio, na sequência de uma moção de censura do PRD ao Governo minoritário do PSD chefiado por Cavaco Silva. Mário Soares até foi a casa de Constâncio avisá-lo pessoalmente do que faria, mas os socialistas não acreditaram, fizeram cair o Governo e Mário Soares convocou eleições das quais saiu a primeira maioria absoluta do PSD de Cavaco Silva.

Agora, pelo impedimento constitucional de dissolver o Parlamento nos últimos seis meses do seu mandato, Cavaco perdeu o poder de dissolução, além de que a Assembleia que agora toma posse só pode ser dissolvida daqui a seis meses. Mas o Presidente não está limitado nem inibido no poder discricionário de decidir e escolher quem indigita como primeiro-ministro. E é isso que Cavaco fez: deu posse a quem ganhou. E avisou que não está disponível para empossar um governo apoiado por partidos com cujos pressupostos ideológicos não concorda. Isso é uma decisão política que Cavaco tem o direito de tomar. E que está dentro dos seus poderes. Terá de viver com ela, ficar na história com ela e terminar o mandato com ela. Até que um seu sucessor que venha a tomar posse tenha então o poder de dissolver a Assembleia.

É de supor que o Presidente, ao anunciar que excluiu a hipótese de um governo de esquerda e ao fazer renascer o confronto político, saiba exactamente como vai conduzir a situação até ao fim. Não é expectável que Cavaco fique agora para a história como politicamente irresponsável, depois de ao longo de quatro décadas ter demonstrado ser um político de primeira linha. Resta esperar para ver que solução tem o Presidente no bolso.

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