Entre o caos e a ordem, a monotonia

É sobretudo o riquíssimo material humano que resgata Tenir le Temps da monotonia.

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Tenir le Temps

Como traços sobre uma página vazia, dez mulheres e seis homens, descalços, de casuais calças, camisetas, vestidos e saias em tons verde caqui, cruzam-se, aglomeraram-se ou dispersam-se pelo palco, quais transeuntes numa imensa e caótica cidade.

O coreógrafo francês Rachid Ouramdane (Nimes, 1971) inscreve o movimento dos carismáticos intérpretes num espaço cénico totalmente revestido de cicloramas brancos. Os corpos produzem avalanches, sequências em cascata e efeitos de dominó, em cânone ou a evoluir de leitmotivs. Na genealogia do minimalismo de Steve Reich e Philip Glass, a “escultura sonora” original de Jean-Baptiste Julien intensifica a percepção cumulativa das acções das figuras em palco, com motivos musicais repetitivos pontuados de subtis desfasamentos. 

Dançar a partir de princípios como a “repetição”, “depuração” e “acumulação” é um preceito criativo ciclicamente revisitado na história da dança nas últimas décadas. Como transportar estes ditames coreográficos (e seus correlatos ideológicos) até ao momento artístico, social e político presente? Esta é a questão que paira sobre Tenir le Temps (poderia traduzir-se por “tempo de espera” ou “segurar o tempo”), a primeira apresentação Ouramdane (nome em ascensão na dança francesa desde finais de 90) em Portugal.

Esta é uma dança devedora das intrincadas coreografias minimais de Lucinha Childs e dos movimentos comuns (como simplesmente caminhar) expandidos no espaço por Trisha Brown - ícones da rebeldia (hoje institucionalizada) com a qual a dança pós-moderna dos sixties americanos se despojava de artifícios técnicos em busca de um “movimento puro”. Democraticamente acessível a todos os corpos e isentada de universos referenciais exteriores a si mesma, a performance tornava visível a máxima de T.Brown, válida tanto para a arte como para a vida: between caos and order is complexity.

Esta criação convoca, ainda, o emblemático filme experimental Le cours des choses (1988, Peter Fishly e David Weiss), onde uma explosão faz rolar um pneu, que embate numa prancha, que faz derramar um frasco de ácido... encadeamento onde se perde a noção do que causa o quê.

Mas, Tenir le temps, não transcende os predecessores ou inventa diálogos convincentes com o presente. O eixo organizador da peça (em três secções intervaladas por blackouts) é ambíguo, e Ouramdane vacila entre a pura abstracção e alusões figurativas: representam-se claros confrontos grupais ou, quando encaixados uns nos outros e aparentam remar uma embarcação, os intérpretes trazem as imagens das trágicas travessias marítimas dos refugiados.

O momento de sapateado - incomum na dança contemporânea - não é devidamente enquadrado. O grupo que se deixa contaminar pelos movimentos de dervixe de Lora Juodkaite, a identidade forte dos solos de Annie Hanauer (dançou na companhia inclusiva CandoCo) ou de Yu Otagaki, apesar de serem pontos altos da peça, são trechos personalizados cuja articulação a um colectivo abstracto tem dificuldade em encontrar nexos.

Sem “segurar o tempo” e entregar-se ao abandono meditativo do registo minimal, nem ideias coreográficas para além das expostas no início, é sobretudo o seu riquíssimo material humano a resgatar a peça da monotonia que espreita ao longo deste “tempo de espera”.

 

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