Cilinha, a criança que se fez mulher na clandestinidade

Aos 69 anos foi eleita deputada pelo BE à Assembleia da República. Chama-se Domicília Maria Costa e, em 2003, o PÚBLICO revelou-lhe a vida que viveu clandestina entre os sete e os 24 anos, idade em que rompeu com o PCP e deu o salto para Paris. Republicamos agora esse texto, sem qualquer adaptação.

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Cilinha, Deolinda, Daniela, os vários nomes de Domicília na clandestinidade Nélson Garrido

“Claro que nunca namorei, na clandestinidade nunca namorei”, diz Domicília Maria Correia da Costa, hoje com 57 anos, e que viveu clandestina em Portugal entre os sete e os 24 anos de idade. Viveu e cresceu na clandestinidade num total de 17 anos, 13 com os pais, e quatro já autónoma, assumindo ela mesma a responsabilidade por casas do partido, ou seja, as habitações que formavam a rede de apoio da direcção do PCP durante o fascismo.

Então, em 1966, irá formar uma casa com o à época funcionário do PCP, Silva Marques, acabando por romper com o partido em 1970, em solidariedade com Silva Marques, saindo do país meses depois deste, para se lhe juntar em França.

Só virá a Portugal em 1972, de férias, pela primeira vez como adulta, assumindo a sua real identidade e casada, desde o ano anterior, com Joaquim Soares dos Santos Júnior, de quem veio a ter dois filhos. Falecido há dois anos, Joaquim Santos Júnior, nascido em Tabuaço, e residente no Porto, vivia então em Paris também exilado, depois de ter sido demitido da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos e preso pela PIDE, em 1964, e ao fim de cinco anos de funcionalismo público. Voltaram a viver no Porto, após o 25 de Abril, tendo sido a seu pedido, “por questão de honra, reintegrado no mesmo lugar em que tinha sido exonerado”.

De volta ao Porto, Domicília inscreve-se no PCP. Um regresso à militância num partido que até já a expulsara, como resposta à sua ruptura. Mas Domicília está convencida de que foi aceite sobretudo por os pais serem quem eram. Durante duas décadas fez a vida normal de militante, agora já legal. Foi candidata autárquica, desempenhou tarefas no concelho onde mora, Oliveira do Douro. Até que, em 1991, rompe de novo com o PCP. O motivo desta vez foi a reacção da direcção comunista ao golpe de Estado na URSS e a solidariedade com Barros Moura, Raimundo Narciso e Mário Lino, então expulsos.

Nascida em Alhandra a 25 de Janeiro de 1946, Domicília é filha de Antero da Costa, falecido em Maio de 1999, e Maria Correia dos Santos, que morreu em Agosto de 2000. Não recebe, porém, o apelido Santos da mãe e apenas o Correia. O pai, já então militante do PCP, opôs-se a ter uma filha com o nome Santos Costa, igual ao do ministro de Salazar.

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Por decisão dos pais, Domicília acompanha-os na clandestinidade e não mais os largará até aos 20 anos. É a própria Domicília que assume que esta é uma situação rara e não esconde que a dificuldade de a sua mãe se separar de si se prende com o facto de ela Nélson Garrido

Em 1953, abandonando a fábrica em Alhandra, conhecida como “da Figueira”, onde era carpinteiro, e com currículo de militância activa desde as greves de 1944, Antero da Costa mergulha na clandestinidade, com a mulher e a filha. Inicia então uma vida paralela e adopta o nome António — a mulher será sempre Maria. Só após o 25 de Abril o casal voltará à legalidade, mantendo-se como funcionários do PCP.

Ligações intensas
Por decisão dos pais, Domicília acompanha-os na clandestinidade e não mais os largará até aos 20 anos. É a própria Domicília que assume que esta é uma situação rara e não esconde que a dificuldade de a sua mãe se separar de si se prende com o facto de ela mesma ter ficado órfã aos três anos. “Era hábito irem crianças, só que, pouco tempo depois, eram separadas dos pais, coisa que eu nunca fui, porque isso era condição para os meus pais continuarem ou pelo menos para a minha mãe. Para onde eu fosse, ia a minha mãe; para onde a minha mãe fosse, eu ia”, assume Domicília.

O desejo de não se afastar da filha levou-a mesmo a recusar a hipótese de Domicília ir estudar para fora do país, situação que só depois do 25 de Abril Domicília conheceu: “Fui condicionada pela minha mãe e a minha mãe foi condicionada por mim. Tenho absoluta consciência disso. Quando ela me disse que eu podia ter ido estudar para fora [URSS] e ela não quis, eu senti-me revoltada, eu pensei: ‘Não tinhas esse direito.’ Mas não tive coragem para lhe dizer.

Tínhamos uma relação muito fechada, éramos todos muito fechados, o meu pai, a minha mãe. Era a maneira de ser de cada um e ao mesmo tempo a clandestinidade reforçava isso. Éramos muito pouco expansivos.”

Antes de mergulhar na clandestinidade, já Domicília conhecia alguns códigos de conduta entre os comunistas que se opunham à ditadura de Salazar. “A partir de 1950-51, passavam por minha casa esporadicamente para passar uma noite ou reunir funcionários do partido, como Manuel Guedes e José Vitoriano. Era difícil eles entrarem e saírem de nossa casa sem que alguns vizinhos se apercebessem”, conta Domicília, que prossegue: “Isso fazia com que a partir dos quatro anos de idade os meus pais me tivessem de explicar que aqueles senhores não eram nossos primos, mas nós tínhamos de dizer aos vizinhos que eram nossos primos. E diziam: tudo que ouvires ou vires cá em casa não dizes nada lá fora, tudo o que te perguntarem tu dizes que não sabes, que perguntem ao paizinho e à mãezinha. E eu, qual papagaio, era isso que dizia.”

Com o “D” bordado nos lenços
Embora tratada sempre por Cilinha, diminutivo de Domicília, é ainda criança na legalidade que cria as condições para que o seu nome de guerra passe a ser Deolinda — mais tarde, assinará Daniela no jornal clandestino destinado às mulheres das casas do partido, “A Voz das Camaradas”. É que muito cedo aprende a bordar. “A minha mãe desenhou-me e eu bordei o meu diagrama, fazia lencinhos de bocadinhos de pano”, relata, explicando que foi esse “D” bordado que condicionou a escolha quando se viu obrigada a deixar de responder por Domicília. Mas afirma que já não se lembra do apelido que tinha no bilhete de identidade falso que usou até ir para Paris. Foi com o nome de Deolinda que viveu até aos 24 anos.

“Durante os 17 anos eu vivi em 20 casas e seis quartos”, contabiliza Domicília. Assim, em 1953, vive no Lumiar e na Buraca. Em Maio de 1954, ruma a norte, e esta família passa a funcionar como responsável pelo apoio à direcção do PCP. Moram primeiro na Rua Matias de Albuquerque, no Porto, depois no Verão estão em Leça do Bailio e mais tarde vão para Matosinhos.

Neste período vive com eles Cândida Ventura, que pertencia ao comité central, e a filha Rosa, a Rosita, então com dois anos. Mas não só. “De Maio a Dezembro de 1954, a nossa casa servia para reuniões do comité central. Foi lá uma vez, já muito mal, o José Gregório. Foi então que conheci o Octávio Pato, o Pires Jorge e também o Joaquim Gomes e o Pedro Soares, que tinham fugido da prisão”, conta Domicília, que prossegue: “Depois, juntou-se-nos a companheira do Joaquim Gomes, a Maria da Piedade Gomes.”

Recorda a noite em que, com os pais e Joaquim Gomes, foi de Matosinhos a pé até ao Castelo do Queijo, na Foz, buscar Maria da Piedade Gomes: “Foi em Outubro, mas estava uma noite muito agradável. Eu, o meu pai, a minha mãe, mais o camarada fomos em jeito de passeio. O que me surpreendeu foi que, ao dar-se o encontro, eles abraçaram-se e ela largou a chorar. E eu pensei: chorar porquê? Por que é que um homem e uma mulher se abraçam a chorar? Por felicidade, mas isso eu só viria a entender mais tarde. Depois percebi de alegria de felicidade. Quando eram presos não se sabia quando se veriam de novo.”

De volta à zona de Lisboa, em Janeiro de 1955, vivem no Bairro do Afonsoeiro, no Montijo. É neste ano que os pais de Domicília iniciam a tarefa que mais os ocupará durante a clandestinidade: laborar, manter e proteger uma tipografia do PCP. É nesta tipografia que, até 1959, será impresso o Corticeiro e o Camponês. Antero da Costa e Maria Correia dos Santos voltarão a lidar com uma tipografia após 1963. E Domicília também. Tanto que a partir dos 12 anos, por sugestão de Júlio Fogaça, que fazia a ligação à tipografia e levava os materiais para impressão, a jovem começa a fazer a revisão das provas do Camponês e do Corticeiro. Isto depois de, no Montijo e a pedido dos pais no âmbito da preparação do casal para lidar com uma tipografia, Domicília ter feito ditados aos pais.

De atalaia no “frigorífico”
A seguir ao Montijo, a família instala-se numa quinta na Vila Nova da Caparica. Viverão entre o início de 1955 e 1957 na casa de que Domicília guarda inegavelmente as melhores recordações da sua infância, apesar de esta habitação com chão de cimento, que funcionava numa antiga cavalariça transformada, ter ficado conhecida como “o frigorífico” na família: “A casa era de tal modo fria que tínhamos de meter jornais no meio dos cobertores.”

Mas assume que desempenhava aí já funções de “vigilância”: quando os pais se reuniam com os camaradas, ela ficava sentada na soleira da porta e raspava na madeira desta com a mão sempre que passava alguém. É que, supostamente, a mãe estava sozinha em casa e o pai a trabalhar fora.

De 1957 até 1959, mudam-se para a Cova da Piedade, de onde fogem para Almada, ficando três meses junto ao Cristo-Rei. De regresso a Lisboa, vivem no Alto Santo Amaro, passando a funcionar como casa de apoio ao secretariado e à comissão de redacção do Avante!. Em 1961, voltam ao Porto, onde os pais de Domicília viverão, ainda que em lugares diversos, até ao 25 de Abril.

Ela, porém, regressa à zona de Lisboa, quando começa a ser responsável por casas. De 1966 a 1970 vive assim na Baixa da Banheira, em Paio Pires, num quarto perto do Marquês de Pombal, em São Pedro do Sul e em Viseu. E apesar de ter vivido largos períodos no Porto, onde hoje ainda reside, afirma: “Tive um conhecimento do Porto muito suis generis. Conhecia uns bocadinhos, mas não fazia a ligação, depois do 25 de Abril é que vi, ah, isto é aqui mesmo ao lado.”

Conhecer as “relações empregado-patrão”
Já o emprego fora de casa vem por ordens do partido. Domicília começa a trabalhar como costureira de roupa de crianças. Até aí ocupara-se da tipografia e desempenhara funções, por exemplo, no Avante!, organizando a lista dos donativos que o partido recebia. Mas é por imposição do partido que vai trabalhar fora, no dia a seguir a fazer 17 anos.

“Não me dizia nada, mas aceitei. Disseram que tinha de conhecer o mundo lá fora e as relações empregado-patrão. Se é uma tarefa! E lá fui”, diz Domicília, e continua: “Uma fábrica não podia ser, implicava sindicatos e fotografias para a Caixa de Previdência. Primeiro, pensou-se num vizinho que morava por baixo que era alfaiate, mas o partido disse: ‘Não é isso que tu precisas, tem de ser um patrão que não conheces.’”

Vivia então na Venda Nova, concelho de Rio Tinto, e passou a trabalhar na Rua do Bonjardim, no Porto. Revoltada com o baixo salário, seis escudos por dia, isto em 1963, quis deixar a oficina de costura. Só que o PCP mais uma vez interveio: “‘Tu não vais trabalhar pelo que vais ganhar, é pela experiência de vida.’ Aí fiquei mesmo danada, mas ordens são ordens.”

Acabou por deixar a oficina quando esta foi visitada pela inspecção-geral do trabalho. Isso obrigá-la-ia a inscrever-se na Caixa de Previdência, logo, a apresentar documentos. Vai então para outra oficina de costura, em São Roque da Lameira, descendo do comboio em Contumil, vinda de sua casa, que era então em Ermesinde. É neste caminho que se cruza com Canais Rocha, o controleiro à época. Ainda hoje se lembra da indignação que sentiu quando uma colega de fábrica interpretou isto como encontros de amor: “Ela depreendeu outra coisa e insinuou que eu namorava. Aquilo chocou-me e cortei relações com ela.”

É também nesta fábrica que vê despedir uma aprendiz, que, ao cortar uma casa de botão, abusou da tesoura. Domicília era responsável por ela e na atrapalhação de disfarçar o acidente desatam ambas a rir. Sem apelo nem agravo, a aprendiz é despedida. Para mostrar que não tem ressentimentos, a rapariga, de cujo nome já não se lembra, manda-lhe uma carta através de uma irmã que permaneceu na fábrica.

E, lamentando as amizades que a clandestinidade lhe roubou, Domicília recorda: “Essa carta desencadeou uma troca de cartas durante os vários meses que continuei lá a trabalhar. Havia, semanalmente quase, uma troca de cartas. E eu não sabia a morada dela, nem ela a minha e usávamos a irmã dela. É das tais coisas, se não fosse a clandestinidade, provavelmente viríamos a ser verdadeiramente amigas. Mas mudei de casa, mudei de emprego e nunca mais soube dela.”

Disfarçada de criada no banco de trás a caminho de Paris

Aos 24 anos de idade e depois de já ter vivido 17 anos clandestina, Domicília Maria passa a salto para França, em Abril de 1970. Rompe então com a clandestinidade, mas também com o PCP. Uma ruptura que faz em solidariedade com Silva Marques, então funcionário clandestino, com quem partilhava a vida clandestina desde que, quatro anos antes, em 1966, se autonomizou dos pais e passou a ser ela mesma responsável por casas clandestinas, à imagem da mãe.

Sem querer entrar em pormenores, Domicília Maria afirma que entendeu na altura e que entende ainda hoje que Silva Marques “tinha razão” e por isso foi solidária com ele. “Disse-lhe: ‘Acho que tens razão, o partido não tem procedido bem contigo, eu vou-me embora, mas quero que os meus pais saibam por mim por que é que vou, por que eu agora perdi a confiança no partido.’” E com o objectivo de se reunir a Silva Marques em Paris, com quem se corresponde, para depois seguir “para Cuba ou para a Argélia”, Domicília insiste com o PCP que quer viver de novo com os pais. Aguarda a resposta no Porto, num quarto alugado, “até que o partido disse: sim senhora”.

Chegada junto dos pais assumiu a situação: “Provavelmente logo naquele dia disse aos meus pais: ‘Eu tenho que vos pôr ao corrente de uma coisa, eu não venho para ficar. Não sei o que vos foi dito mas o que se passou foi assim. E eu vou ter com ele. Simplesmente quis estar convosco para dizer isto, não sei até que ponto as cartas vos chegariam direitinhas às mãos e vocês teriam conhecimento exacto das coisas.’”

Domicília aguarda em casa dos pais a ida do controleiro para o pôr ao corrente de que está de partida. “Ele ainda tentou demover-me, saber para onde é que eu ia, com que meios é que eu ia. Aí eu disse: ‘Tem paciência, mas eu isso já não digo’”, relata Domicília, que prossegue lembrando que os pais acabaram por ter de mudar de residência, para o caso de ela ser apanhada e a PIDE descobrir o rasto da casa. “E, pronto, no dia seguinte fui-me embora, as malas nem estavam desfeitas”, conta.

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Embora tratada sempre por Cilinha, diminutivo de Domicília, é ainda criança na legalidade que cria as condições para que o seu nome de guerra passe a ser Deolinda — mais tarde, assinará Daniela no jornal clandestino destinado às mulheres das casas do part Enric Vives-Rubio

Sem a ajuda do PCP, Domicília inicia então o seu processo de viagem para França para se juntar a Silva Marques, contando com os circuitos de apoio de Silva Marques. De casa dos pais vai para a Mealhada, onde fica uns dias junto a amigos. Depois, o irmão de Silva Marques vai buscá-la de carro e leva-a para a sua residência, despedindo a criada, para justificar a presença de uma nova mulher na casa.

Passar a fronteira para ir às compras
Até que o ansiado dia chega: “Foi a família toda metida no carro, ele, a mulher, os filhos e eu e fomos a Paris visitar o irmão. Saímos sem problemas. Ele levou-me a um passador para Espanha, que era o mais complicado. Passei lá a noite, lembro-me de dormir numa cama de ferro. De manhã, ao clarear, saímos eu e a mulher do passador. As malas ficaram com o irmão do Silva Marques, eu levava um saquito, com muda de roupa e os meus documentos. De repente, aparece a guarda, não sei se civil, se fiscal, quando estávamos a atravessar uns campos. Perguntaram onde é que íamos. Eu não disse nada. Ela disse: ‘Vamos ali fazer umas compras, daquele lado.’ Eles disseram: ‘Então vão lá.’ Passámos ali ao pé de Vilar Formoso. Depois, passámos a linha de caminho-de-ferro, havia uma estrada e o irmão estava à espera nessa estrada. Meti-me então no carro. Atravessámos a fronteira [de Espanha com França] de noite. Veio a guarda francesa, pediu-lhes os passaportes. Olharam para mim, não pediram nada, lá partiram do princípio de que eu era a criada, não valia a pena, foi como se fosse o cão ou o gato. Não tinha passaporte. Passei assim.”

E, aos 24 anos, Domicília vê-se em Paris. É o corte com o PCP, mas também com um modo de vida: “Aos 24 anos, foi um bocado difícil porque implicou cortar com tudo aquilo que eu tinha vivido até então. E foi difícil porque eu receava perder o contacto com os meus pais, coisa que eu não queria, nem para mim nem para eles.”

Conseguiu, porém, manter um contacto com a família que nunca foi quebrado, mesmo quando passou a ser funcionária autónoma e a ser ela mesma responsável por casas: “Dos 20 aos 24 anos, não vi os meus pais, correspondia-me com eles, com assiduidade, duas vezes por mês. Não ia ao correio, era pelo circuito do partido, não sabia onde eles estavam, nem eles sabiam onde é que eu estava. À partida, estavam algures no país, mas podiam não estar. A minha mãe mandava-me pequenas lembranças.”

Iniciou, assim, um percurso — “aos 20 anos comecei a fazer o que fazia a minha mãe” — que a levou a manter quatro casas durante três anos, “de Abril de 66 até Janeiro de 70”, sempre em companhia de Silva Marques: “A penúltima foi nas Termas de São Pedro do Sul, de férias. A última em Viseu. A primeira foi na Baixa da Banheira. Fui do Porto para a Baixa da Banheira. Depois Paio Pires, tivemos de deixar a casa num ápice. Ele tinha sido detectado e esteve quase a ser preso. Foi por isso que fomos parar a Viseu.”

É então que Domicília está, pela primeira vez, só numa cidade como Lisboa. Enquanto Silva Marques foi para o Norte à procura de casa, Domicília ficou num quarto, “numa casa perto na zona do Marquês”. E é a própria Domicília que relata essa sua primeira experiência de autonomia: “Rompendo um bocado as directrizes do partido, aproveitei para ficar a conhecer um bocadinho de Lisboa. Fui conhecer o Mosteiro dos Jerónimos, andei a fazer um bocadinho de turismo. Estava ali todo o dia, sem ter nada para fazer. Aliás, também se tornaria estranho que uma rapariga da minha idade, com 21 anos na altura, ou 22, ficasse o dia todo ali fechada no quarto. Andei a primeira vez de metro. Foi uma confusão desgraçada a primeira vez — ri-me a perder depois — que eu subi nas escadas rolantes. Ai meu senhor! Foi no Parque. Quis sair, não sei de onde vinha e queria ir para casa, achei que estava perto. Mas quando cheguei a Paris já sabia andar de escadas rolantes!”

Funcionária do PCP aos 13 anos de idade

Domicília Maria Correia da Costa viveu uma vida paralela com regras rígidas e hábitos frugais. E, em 1959, com 13 anos, teve a honra de se ver promovida a membro do PCP e funcionária com salário: “O controleiro propôs que eu passasse a receber salário por inteiro de funcionário — até aí, os meus pais recebiam uma espécie de subsídio — e passaria a pagar quota. Foi a partir daí que considerei que era membro do PCP e funcionária.”

Passa assim a assumir a cem por cento o estatuto de clandestina, ainda que permaneça exteriormente apenas a ser filha do casal Antero da Costa e Maria Correia dos Santos.

E se a filha assume exteriormente o estatuto de filha, a mãe assume o de mãe e a identidade de doméstica. É com essa máscara de mulher que está em casa que Maria Correia dos Santos dá cobertura ao marido, à tipografia e aos inúmeros dirigentes e militantes do PCP que passam pelas suas casas. Ou que habitam nelas, já que, em 1954 e entre 1959 e 1963, esta família apenas se dedicou a manter casas de apoio à direcção comunista, dando residência a dirigentes como Cândida Ventura, Fernanda Paiva Tomás, Guilherme da Costa Carvalho, Sérgio Vilarigues e Álvaro Cunhal. Isto além dos dirigentes que aí se reúnem ou fazem a ligação com a casa quando ela é tipografia. Figuras como António Dias Lourenço, Afonso Gregório, Joaquim Gomes, Joaquim Pires Jorge, Júlio Fogaça e Octávio Pato.

Dar abrigo a primos e cunhados
Todos eles eram dissimulados para os vizinhos, como primos ou, os mais assíduos, cunhados. “Normalmente não eram nem muito velhos nem muito novos, portanto eram irmãos da minha mãe, nunca cunhados, porque, às vezes, entre cunhados podia haver qualquer coisa. Tinha de ser irmão, para poder ir a casa mesmo não estando o meu pai — que estava, mas fazia de conta que não estava”, explica Domicília, prosseguindo: “O Júlio Fogaça era bastante mais velho que a minha mãe e a vizinha do lado, a miúda, lá achava que ele não tinha cara para ser irmão da minha mãe e então dizia: ‘Olha, lá vem o teu avô.’ Isto em 1957 e 58, na Cova da Piedade.”

A frequência das mudanças obedecia a regras rígidas: “Os cortes.” Domicília explica: “Vivíamos numa casa e não mudávamos logo para a outra.” E recorda uma mudança de Vila Nova da Caparica para a Cova da Piedade: “Na altura, ainda se andava com mobílias atrás (depois, cada vez que se alugava uma casa vendia-se e comprava-se tudo novo), ainda era a mobília feita pelo meu pai. Alugou-se uma camioneta e fomos. Foi pôr-nos não sei onde, para os lados da Sobreda talvez, onde havia um pinhal, e despejaram tudo ali. Depois, o meu pai foi buscar uma outra camioneta que levou tudo para a nova casa. Isto era fazer um corte, às vezes fazia-se mais do que um. Nessa mudança, enquanto estávamos à espera, passam dois operários de bicicleta: ‘Já viste? Com mobília! Devem ter sido despejados’.”

A necessidade de fuga rápida aconselhava que as casas fossem alugadas no rés-do-chão, onde “era mais fácil entrar e sair sem passar pelos outros”. Tarefa obrigatória de Maria Correia dos Santos era ter “sempre o cuidado de antes de as pessoas saírem controlar, ir à janela e ver” se o caminho estava livre.

As casas eram alugadas pelo pai de Domicília, Antero da Costa, que a partir da ida para a Rua dos Lusíadas, no Alto de Santo Amaro, em Lisboa, passou a trabalhar fora, como carpinteiro, mas sempre sem patrão certo e sem situação regularizada. Até aí — tal como acontecerá mais tarde —, Antero da Costa passa o dia em casa trabalhando na tipografia clandestina, cujo barulho era abafado com “o som da rádio muito, muito alto, para não se ouvir o rolamento da prensa e o levantar do papel”. Isto porque não podia haver qualquer sinal de actividades clandestinas. Tal como não podia transpirar o barulho das reuniões.

Deu-se assim o corte com o mundo e Domicília sublinha: “Uma coisa é ir para a fábrica e falar com os colegas e outra é estar numa casa com uma tipografia. Ele estava ali semanas a fio em que não via ninguém a não ser a mulher e a filha. Volta e meia passavam um ou dois camaradas, para fazer uma reunião.” Mas relativiza: “O máximo que os meus pais terão estranhado era não ir a um bailarico.”

Para os vizinhos, Antero passa os dias, até as semanas, fora, chegando sempre a altas horas, já de noite. E Domicília revela como era feita essa dissimulação do quotidiano: “Com o meu pai era mais complicado. No Inverno, como os dias são pequenos, as pessoas não se apercebem, a pessoa diz que saiu cedo de manhã, quem faz uma vida normal sai e entra de noite. Agora, no Verão, os dias são grandes, torna tudo mais complicado. Isso obrigava a que, de vez em quando, víssemos se não havia ninguém, pelas portas nem pelas janelas, o meu pai saía e voltava a entrar, tocava à campainha ou batia à porta. Eu e a minha mãe estávamos no quintal, por exemplo, a regar as plantas, a tratar das galinhas ou dos coelhos, o meu pai chegava, dava um beijo a cada uma e perguntava-nos: ‘Então, como é que correu o dia?’.”

Mantendo a fachada, Antero da Costa trouxera consigo “o banco de carpinteiro e, aos sábados e domingos, estava em casa e trabalhava aos olhos de toda a gente”. Argumentando que aquele ofício não dava para viver, Antero dizia que era carpinteiro de moldes. Um ofício que a filha ainda hoje não sabe explicar bem, mas que funcionava às mil maravilhas como cobertura. “Acho que era fazer moldes para máquinas, só que eram em madeira. Sei lá. Foi aquilo que lhe disseram: ‘Olha, diz que és isto.’ Acho que nem ele sabia”, desabafa.

O orçamento da família e as idas ao médico
O salário no PCP era “pago por inteiro”, mas “havia alturas que era às pinguinhas”. Consistia numa verba fixa, mais um subsídio para a filha e o montante exacto para a renda, “fosse barata ou fosse cara, fosse o que fosse era o partido que pagava, mas era os funcionários que iam ao senhorio”. De resto, “todas as outras despesas, fosse comida, água, luz” saíam do salário.

Já o médico era pago à parte, pelo partido. E Domicília lembra a sua primeira consulta, aos dez anos: “Tive uns problemas suspeitos, os camaradas acharam que era melhor ir ao médico. Fui e fiz as análises à urina. Foi o partido que pagou. O ser médico do partido ou ser médico normal está também relacionado com cada um dos funcionários. Se os meus pais fossem conhecidos da polícia, não podiam ir assim a qualquer médico, era um risco acrescido. Como não era o caso, o meu pai nunca foi preso, isto dava-nos mais alguma margem de manobra. Evitava-se mais até por questões monetárias do que por outra coisa.”

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Domicília Costa e Albertina Dias em 2008 em Serpa, na Rota dos Feminismos da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) Adriano Miranda

Anos depois, quando mora em Ermesinde e trabalha na fábrica de roupa em São Roque da Lameira, Domicília apanha uma pneumonia e regressa ao médico. É-lhe receitada penicilina. Os pais compram-na directamente na farmácia — as urgências eram atacadas logo. Do partido recebeu então um suplemento de salário para alimentação “especificamente para carne e fruta”, e frisa que era “para comer uns bifinhos de vez em quando”.

Recorda que uma das múltiplas tarefas de apoio que desempenhou foi fazer, “à máquina, listas de medicamentos que eram pedidos” para os camaradas doentes, para que outros camaradas fossem “junto de médicos, de farmacêuticos, ver se alguém lhes fornecia aqueles medicamentos”. E só se não os conseguissem assim, iam “comprar à farmácia”.

Além da alimentação, luz e água, o salário servia “eventualmente para roupa e calçado”, mas, às vezes, o partido também tratava de os arranjar. Domicília lembra que como o pai “levou o banco de carpinteiro, com toda a ferramenta, e tinha uma peça de ferro [bigorna] parecida com a dos sapateiros, era ele que arranjava os sapatos”. E recorda: “Quando andei na escola da Buraca, a minha mãe dizia que estava doente quando as minhas botas estavam a arranjar.”

Já as roupas eram feitas pela mãe. “A primeira gabardina foi feita pela minha mãe, a partir de uma grande de homem azul”, dada pelo partido. “A única vez que a minha mãe me levou a uma modista foi aos 12 anos, na Cova da Piedade. Lá arranjou um tecido e achou que queria uma coisa mais especial”, conta.

Bifes de cavalo, sangue de porco e cozido à portuguesa
O dinheiro era, assim, pouco. “Eu recordo-me de que em 1955, talvez já em 1956, os meus pais estavam muito preocupados porque a minha mãe chegou a um dia em que já só tinha três tostões no bolso. O meu pai não tinha dinheiro nenhum, como não saía, não precisava de dinheiro. O dinheiro, quando era entregue, ia logo para as mãos da minha mãe, a minha mãe é que administrava aquilo. O meu pai não fumava”, lembra Domicília, acrescentando: “Mas durante uma semana andámos a comer papas de milho, que eu detestei, mas não tive outro remédio, pois não havia outra coisa para comer, foi o mais barato que a minha mãe arranjou para fazer esticar o dinheiro até ao dia em que o controleiro voltasse lá a casa. Nós nunca tínhamos possibilidade de o contactar, o controleiro é que tinha de ter a preocupação de nos ir contactando.”

Fonte de bens alimentares eram também as hortas e as respectivas capoeiras, mantidas nos quintais das casas. Isto aconteceu com Domicília algumas vezes, por exemplo, na Cova da Piedade, como relata: “Tínhamos ovos com fartura. A minha mãe fazia bolos ao fim-de-semana. Comíamos galinhas e coelhos normalmente. Depois, ao fim-de-semana, geralmente era quando a minha mãe ia ao talho e comprava um bocadinho de carne para cozer e fazia-se um cozido. Geralmente ao sábado ou ao domingo o almoço era cozido à portuguesa.”

Momentos houve, todavia, que o casal tinha tanto trabalho político que era Domicília que tinha de tratar das refeições. “Em 1958, quando foi as eleições do Humberto Delgado, nós tivemos imenso trabalho. Eu ajudava bastante os meus pais no trabalho de tipografia e não havia tempo, nem para limpeza de casa, nem para cozinhar, nem para coisa nenhuma. Era eu que ia às compras. A minha mãe dizia-me: ‘Olha compras tanto disto, tanto daquilo.’ Porque era barato e era rápido, os nossos bifes eram de cavalo. Muitas vezes o nosso almoço era ou conservas com batatas cozidas e as couves do quintal ou então comprávamos sangue, sangue de porco com batatas cozidas. Ela fazia um molho e deitava-se por cima das batatas. Era isso ou bacalhau e ovos das galinhas.”

O cinema, a cerveja e o café
Assumindo o quanto a sua vida foi condicionada pela clandestinidade, Domicília conta que a primeira vez que foi ao cinema foi aos 12 anos, “levada por um casal de vizinhos”. Foi nessa saída que provou cerveja: “Na mesma altura, também bebi cerveja pela primeira vez e não gostei, até hoje. Achei aquilo de um gosto execrável, mas, como era má educação dizer que não, fiz o sacrifício de beber toda, mas jurei para o resto da vida não beber cerveja. Não gosto nem do cheiro. Mais tarde, no Porto, com uma miúda vizinha fui ver o Joselito.”

Quanto aos hábitos de um jovem normal, afirma ainda: “Ao café claro que não ia, fui só no dia que me deram a cerveja. E fomos, uma vez ou duas, no Verão, quando, entretanto, começou a haver televisão e os cafés se enchiam. Havia que manter a aparência. Lá pelas dez horas, saíamos, andávamos a ver montras e íamos a um café, longe. Lembro-me que vi uma peça de teatro na televisão. Era isso as nossas saídas. De vez em quando no Verão, lembro-me que fomos fazer um piquenique, para justificar encontros. Saíamos de manhã e vínhamos de tarde.”

Álvaro Cunhal pintou-se de louro

Entre Fevereiro e Maio de 1961, um ano após a fuga de Peniche, Álvaro Cunhal viveu no Porto, junto ao Mercado do Bom Sucesso, com a mulher Isaura, e a filha Ana, então recém-nascida, em Dezembro de 1960.

Para despistar a polícia, o então já secretário-geral do PCP pintou “o cabelo, as sobrancelhas e as pestanas de louro”, como relata Domicília, em cuja casa e dos pais, no Bom Sucesso, Cunhal viveu esse período. Apesar do disfarce, Cunhal manteve durante esse tempo o respeito pelas normas de segurança e só entrava e saía de noite, sendo transportado de carro, que o recolhia e o deixava nas imediações do Bom Sucesso.

“Numa das vezes em que o Álvaro foi ali deixado, suspeitou-se de qualquer coisa, de qualquer carro, ou de qualquer fulano que devia estar a vigiar a zona. A partir daí, o Álvaro pôs-se a andar e nós procurámos outra casa, o facto de o Álvaro sair não levava a que saíssemos de casa, mas como não sabíamos o que é que poderia vir dali, então também nós mudámos de casa”, conta Domicília Maria, que, então com 15 anos, marchou com os pais para o Carvalhido, onde a casa voltou a servir de apoio ao Comité Central, que é como quem diz a servir de espaço para reuniões da direcção comunista e para albergar os dirigentes de topo.

A tarefa dos pais de Domicília, Antero e Maria, era desde 1959 precisamente a de manterem uma casa de apoio ao Comité Central. Desempenharão esta tarefa até 1963, abandonando assim a missão de ter a seu cargo uma tipografia, como aconteceu entre 1955 e 1959 e 1964 e 1966.

Em Lisboa, antes de voltarem ao Porto, os pais de Domicília mantiveram, durante cerca de um ano, uma casa no Alto de Santo Amaro, um segundo andar de esquina da Calçada de Santo Amaro com a Rua dos Lusíadas. É nessa casa que funciona também a comissão de redacção do Avante! — “Era lá que era elaborado o ‘Avante!’, não era impresso, porque nós já não estávamos com a tipografia. Às vezes escreviam lá os artigos e quando não escreviam eram passados à máquina. Ia dali tudo preparadinho para a tipografia. Era essa a função mais regular dessa casa.”

É também Domicília que explica: “Quando fomos para o Alto de Santo Amaro, os camaradas do Secretariado hesitaram em continuarmos com a tipografia, que era essencial para o Camponês e o Corticeiro que fazíamos. Pensaram em nos entregar o Avante!, mas optaram por a casa ser de apoio ao secretariado.” É então que Domicília começa a privar com a elite da direcção comunista e a desenvolver profundas relações de amizade com alguns deles. Isto na época em que se dera a fuga de Peniche, a 3 de Janeiro de 1960.

Domicília e os pais, aliás, participaram na preparação da fuga, sem saber “o que estava na forja”. E recorda: “Naquela madrugada de dia 3, apareceu-nos um camarada a bater à porta e disse: trago aqui uma coisa que tem de ser feita esta noite. Trazia umas quantas folhas de cartolina branca e um ou dois tinteiros de tinta permanente. Começámos por pintar, com os tinteiros, as folhas de cartolina, torna-la escura. Depois, foi secá-la e cortá-la em tiras, dobrá-la e espetar os pregos — que acho que ele também trouxe ou eram do meu pai — nas tiras dobradas que só depois viríamos a saber para que iriam servir, para deitar na estrada e furar os pneus caso houvesse perseguição. Até às oito da manhã, fizemos isso. Então, o meu pai saiu com a incumbência de ir comprar umas cordas grossas, não sei quantos metros. Como a tinta não chegava, deram-me ordem para me meter num táxi — foi a primeira vez que tomei um táxi sozinha — e fui a Belém a uma loja que vendia materiais de escritório ou a uma drogaria comprar tinteiros, não sei quantos, mas foram vários, e continuámos a pintar.”

Assim, “após a fuga, em Fevereiro ou Março, começaram a haver reuniões lá em casa com o Álvaro Cunhal, o Francisco Miguel, o Guilherme da Costa Carvalho, que, entretanto, decidiram que ficasse lá. Para isso saiu a Fernanda”. Ou seja, além de servir de apoio ao secretariado e ao Avante!, a casa da Rua dos Lusíadas foi também a morada do recém-fugitivo de Peniche Guilherme da Costa Carvalho, em 1960, durante cerca de três meses. Isto depois de ser, entre Agosto de 1959 e Março de 1960, morada de Fernanda Paiva Tomás, destacada militante comunista, então casada com Joaquim Carreira, que estava preso, e prima do escritor Branquinho da Fonseca e sobrinha de Tomás da Fonseca.

Mas a casa era frequentada por figuras como Dias Lourenço, Octávio Pato, Pires Jorge. “Normalmente iam reunir-se com a Fernanda, o Dias Lourenço passava por ser marido da Fernanda Tomás, os outros eram irmãos e primos.”

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Publicação clandestina do PCP durante o Estado Novo, Edições Avante!, 1972 Enric Vives-Rubio

Ora é no meio desta intensa actividade numa casa que servia de plataforma de passagem e abrigo do topo da direcção do PCP que a mãe de Domicília vem a descobrir que tudo se passava paredes meias com um agente da PIDE. Um dia estavam à janela a assistir ao espectáculo do treino de futebol de um clube operário, ali no Largo de Santo Amaro. Acontece que, conta Domicília: “Os rapazes bateram com a bola numa janela do rés-do-chão e o homem, que a gente mal conhecia, veio cá fora discutir com os rapazes. A minha mãe à janela viu o vizinho sacar de um cartão e mostrar um cartão. Achou aquilo muito estranho. E acabou por se chegar à conclusão que era da PIDE. Mas com tanta gente a entrar e a sair, os que tinham fugido e outros que já tinham estado presos, o fulano devia ser administrativo, não tinha capacidade de reconhecer. Ele eventualmente ter-se-á cruzado com o Guilherme da Costa Carvalho, o Álvaro Cunhal mesmo ou o Francisco Miguel. Eles sabiam que se cruzaram com um homem. Desses, o único que não tinha estado preso era o Octávio Pato. Tínhamos mesmo de sair dali.”

Segue-se então uma mudança para perto. “Fomos para uma casa mais abaixo. Fomos viver com o Sérgio Vilarigues”, conta Domicília, que prossegue: “Na altura, o filho dele [António] morava perto de nós, com os avós maternos [pais de Maria Alda Nogueira, que estava presa], na Rua Dias Coelho, na altura Rua da Creche. É curioso como um homem está tão perto do filho e não o pode ver. Ele contava histórias do miúdo, que era muito traquina.”

Tempos passados, “deu-se uma série de prisões”. Um dos presos foi Guilherme da Costa Carvalho e a família de Domicília voltou a ter de mudar de casa. “Foi na altura do Natal, mandaram-nos regressar ao Porto. O meu pai foi à procura de casa. Eu fiquei com a minha mãe. Aí, vendemos a mobília, ficámos mesmo com as coisas indispensáveis. Eles terão tido muita pena de vender as mobílias [feitas pelo pai], mas na altura só tive pena de me desfazer da boneca grande que tinha.”

Enquanto o pai procura casa no Porto, Domicília e a mãe ficam num quarto alugado, na Rua Tomás da Anunciação, à espera de ordens para marchar para o Norte. E relata: “Deu-se o Natal e o Ano Novo e o meu pai lá em cima e nós cá em baixo. Um dia, de conversa com a senhoria, ela diz: ‘Ah pois, o senhor que morava aí nesse quarto que era agente da PIDE...’ E pensámos: ‘A gente foge de um e vem meter-se noutro’.”

Escondida para simular o exame da 4.ª classe

“Então, eu tinha dez anos e resolveu-se que eu ia fazer o exame da 4ª classe”, diz Domicília Maria, referindo-se ao que considera o pior momento que viveu: “Este foi o período de toda a clandestinidade que me custou mais e é fácil de compreender.”

Sem condições para frequentar a escola normalmente, por razões de segurança — o PCP manteve durante o combate ao fascismo um aparelho no interior do país que se regia, a partir dos anos 40, por regras que são consideradas ainda hoje como das mais apuradas —, Domicília foi estudando um pouco aos trambolhões.

A viver na quinta da Vila Nova da Caparica — viveu aqui dos 9 anos e meio até aos 11 anos —, com vizinhos regulares que apareciam sobretudo aos fins-de-semana e férias, colocava-se em relação a si o problema que era já então uma criança, aparentemente com condições para o fazer, não frequentar a escola oficial. Até porque, afirma: “Fazia também uma certa confusão, sendo filha única, que os meus pais não se esforçassem para eu estudar, eu não tinha propriamente cara de atrasada mental.”

“Ora, naquele ano, aquilo foi terrível para mim — relata Domicília — porque, para aí em princípios de Maio, decidiu-se que eu ia desaparecer do mapa durante toda a semana, só ia aparecer ao domingo para dizer que tinha ido para Lisboa. E então pensou-se que eu iria para casa da professora. Mas estava em casa, falando muito baixinho, para que ninguém ouvisse, isto com dez anos, para aí dois meses, Maio, Junho. Tinha de ter cuidado. A minha mãe ia lavar a roupa fora, ali ao pé da porta, mas se eu precisasse de a chamar, não podia, quando muito raspava na porta a ver se ela ouvia. Ela não podia chamar por mim, eu não podia chamar por ela. O meu pai a mesma coisa, mas isso, o meu pai, pronto, já estava habituada a não se poder chamar por ele. A situação que já era vivida pelo meu pai passou a ser vivida por mim, de falarmos sempre muito baixinho. A tal ponto que eu, depois de toda a semana naquilo, quando chegava ao domingo — tinha de se fingir que eu vinha sábado à noite para se justificar ninguém me ver chegar —, já falava também assim com a minha mãe. E diziam: ‘Oh menina, fala direito porque estás a falar assim, fala alto.’ Eu dizia: ‘Ah pois.’ Mas tanto falava alto como voltava à mesma coisa.” E remata: “Os primeiros dias nem foi o que me custou mais. Às tantas, os miúdos começaram a ir para lá, eu ouvia-os a brincar e eu ainda não podia. Aí, justamente, refugiava-me sobretudo a ler.”

Um falso exame da 4ª classe, que, mesmo assim, não terá iludido os vizinhos mais experientes e cultos, que passavam férias na quinta, já que, conta Domicília: “Quando se entendeu que era altura, apareci e disse que já tinha feito a 4.ª classe. Aí sim, perguntam-me os tais dois casais de intelectuais que lá iam passar as férias: ‘E quantos valores tiveste?’ Eu pensei: ‘Bonito, e agora.’ Ninguém me tinha falado para dizer quantos valores eram, não sabia que resposta havia de dar.”

Sublinha, contudo, que a solidariedade desses casais era total e lembra com carinho uma senhora, muito amiga da sua mãe, que vivia na quinta e que era prima por afinidade dos Palma Carlos: “Algum tempo depois de já estar na Cova Piedade, o Júlio Fogaça veio com o recado para nos dar: ‘Vocês lembram-se de uma senhora idosa da família Palma Carlos?’ Essa senhora, em conversa com um camarada nosso — nunca soubemos se era ele se outro —, disse que tinha muita pena de um casal que lá viveu ter ido embora, porque eram muito boas pessoas, tinham uma vida muito esquisita, uma filha pequena, que não sabia quem eram, mas que de certeza que eram clandestinos.”

Com os estudos retomados e regularizados apenas depois do 25 de Abril, lamenta a escolaridade perdida: “Na Cova da Piedade, a minha mãe teve uma tarefa e teve de apanhar transportes, em Junho ou Julho, na altura da aptidão ao liceu, e, na camioneta de regresso, veio com um grupo de crianças que tinham ido fazer o exame. Ouvi aquilo e desatei num choro.”

Domicília Maria até entrou cedo na escola, aos seis anos, por pressão das professoras de Alverca. E recorda com saudade as suas aulas. “Quando passámos à clandestinidade, eu tinha precisamente acabado de entrar na escola, andava há poucos meses. Durante algum tempo ainda conseguimos que eu andasse na escola. Conseguimos porque, antigamente, a pessoa ia à escola, comunicava que ia mudar de residência e levava a transferência, que entregava, depois, na nova escola. Isto, no espaço de um ano, aconteceu duas vezes. À terceira mudança de casa, o Ministério já não autorizava a transferência em mão pelo próprio, tinha de ser de escola para escola. Aí foi a sentença: tive de deixar a escola da segunda para a terceira classe. Faltava-me um mês para concluir a segunda classe.”

Assim, depois de frequentar escolas no Lumiar e na Buraca, quando parte para o Porto, Domicília vê-se afastada das aulas. E diz: “Aquela coisa de não darem a transferência ficou um bocado no ar. Isto foi em Maio. Entretanto, meteram-se as férias grandes. Eu queria era brincadeira. Nem precisava de ir para a rua brincar, porque lá havia uma criança, que era a filha da Cândida. Quando fomos para o Porto, foi viver connosco a Cândida Ventura, que tinha uma criança então com dois anos. Eu tinha oito. A minha mãe nunca me tinha deixado andar na rua. Tinha uma ou duas amigas e íamos a casa uma da outra. Só senti mesmo quando a escola recomeçou, em Outubro, para os outros, mas não para mim.”

O recurso foi arranjar umas mulheres que tomavam conta de crianças: “Isso foi, mais ou menos, mascarando o não andar na escola, ia ficando com essas pessoas”, diz Domicília em relação ao período em que viveu no Montijo e Vila Nova da Caparica, a partir de 1955.

E é no Montijo que há a primeira tentativa, falhada, para que Domicília retome a escolaridade. “Houve uma tentativa do partido de ver se eu fazia a passagem da terceira para a quarta. Fomos a Palmela, a uma escola falar a uma professora. Não sei, nunca cheguei a perguntar à minha mãe e ela nunca me chegou a dizer porque foi aquela escola e não outra qualquer. Será que aquela professora era de algum modo conhecida do partido? Vá-se lá saber. O mais natural era isso. Mas não sei.”

O facto é que a tentativa não resulta. A professora diz que, para fazer o exame, a partir daquele momento, Abril ou Maio, até ao exame, ela “frequentasse diariamente uma escola para aprofundar” o que sabia e ficar preparada para a prova. Os pais de Domicília e os responsáveis pela família na direcção do PCP ainda pensaram propor à professora que albergasse Domicília em sua casa até ao exame. Mas as razões de segurança falaram mais alto: “Só que aí acharam que era muito arriscado eu estar em casa da professora, a professora teria familiares, os familiares far-me-iam perguntas que podiam ser perigosas. Sabia-se lá que perguntas me iriam fazer e como me iria descartar delas. Tinha nove anos. Desistiram. Nunca mais voltámos à escola.”

Aprender francês a traduzir Politzer

“Entretanto, apareceu lá em casa um livro em francês, que era ‘Os Princípios Elementares da Filosofia’, do [Georges] Politzer. O que me deu na cabeça? Traduzir aquilo! Eu sabia muito pouco de francês, mas comecei a ler, achei interessante e traduzi aquilo integralmente. Devia ser uma desgraça de tradução, mas aprendi francês. A cada palavra, ia ao dicionário. Eu levava aquilo a peito. O meu pai reclamava com a minha mãe: ‘A tua filha não te dá nenhuma ajuda em casa.’ Ela dizia: ‘Deixa estar que está a estudar’”, conta Domicília Maria sobre a forma como se familiarizou com o francês, passando o tempo que tinha livre, ao longo do ano de 1961, no Carvalhido, no Porto, depois de ter deixado a casa do Bom Sucesso.

A qualidade da tradução não é possível ajuizar aqui, mas o que é facto é que a própria tradutora garante que quando chegou a Paris aquela experiência serviu-lhe de muito. Mesmo assim afirma que uma coisa é ler, outra falar: “O único problema que tive em França foi o francês.” Apesar de não fazer de Domicília uma fluente falante da língua, o facto é que esta história é sobretudo um exemplo de como a aprendizagem de Domicília foi feita de forma própria. A começar logo pelo aprender a ler e a escrever.

“Quando entrei na escola já sabia ler e escrever porque um dos primos [militantes do PCP apresentados aos vizinhos como primos] que passava lá por nossa casa arranjou-me um caderninho e desenhou muito bem desenhado — não faço ideia nenhuma de quem seria essa pessoa —, em papel vegetal, o abecedário em maiúsculas e minúsculas. Depois, com o lápis, desenhava por cima”, relata Domicília, que acrescenta: “O meu pai ensinou-me a fazer as contas.”

A preocupação de Antero na educação da sua filha parece manifesta, assim como o seu interesse pela leitura. É Domicília que recorda que, “ainda na fábrica quando recebia a féria”, lhe trazia “um livro ou dois que custavam quatro tostões”. Livritos que coleccionou: “Eu tinha muito cuidado com os meus livros e os meus brinquedos, de forma que guardei e cheguei a ter uma colecção de trinta e tal livrinhos de histórias da carochinha, daquelas coisas infantis.” É essa colecção que mais tarde, já com 15 anos, emprestou para uma miudita que vivia na clandestinidade também e que ficara traumatizada ao ver os seus pais serem presos e a casa assaltada pela PIDE.

Logo de pequena, Domicília ganha o hábito de ler e devora todos os livros que os pais possuíam: “Ia a uma mala da tropa que ele tinha feito, de madeira, de grandes dimensões, toda cheiinha de livros. Se percebia, percebia, se gostava, lia até ao fim, se não gostava, ia buscar outro, mas li aquilo tudo, e era assim que eu passava o meu tempo. Inclusive as cartas de namoro dos meus pais eu li.”

Os livros chegam-lhe também através de vizinhos — “Na Cova da Piedade, havia uns vizinhos nossos que eram sócios da Academia Almadense, que tinha biblioteca. Então, os nossos vizinhos requisitavam livros, que umas vezes liam outras não, e passavam para nós. Eu lia. Estive para ler nessa altura — mas a vizinha disse à minha mãe: ‘Olhe que esse livro não é para a Cilinha — os Capitães da Areia [de Jorge Amado]. Não deixaram, não era aconselhável”, mas também através do PCP. Foi através do partido que leu livros como Os Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado, e A França, de Alves Redol.

Pelo recurso a livros emprestados, ganha o hábito de copiar e guardar as passagens que mais a tocam, nomeadamente destes dois títulos, incontornáveis para a formação de um português de esquerda. E recorda: “Ainda hoje tenho essas passagens, tive sorte, perdi muitas outras coisas, quando tivemos de abandonar a casa precipitadamente para irmos parar a Viseu, aí perdi uma imensidade de coisas, coisas em que tinha muito gosto, coisas feitas pela minha mãe, a minha mãe era muito habilidosa, fazia coisas lindíssimas, esmerava-se muito na minha roupa, praticamente foi ela que me fez a roupa enquanto eu vivi com ela. Naquela intenção de fazer um enxoval para a filha, fazia-me ‘naperons’. Algumas coisas, quando saí de casa, levei, outras ela mandava-me, assim como me mandava correspondência, mandava-me prendinhas. Havia coisas em que tinha imenso gosto que perdi. Mas houve coisas que eu não largo. Contrariando a regra de que se forem para quartos não levem nada que os identifique.”

É esta determinação em aprender que a leva à leitura de jornais — “Comprava-se todos os dias o jornal, era uma coisa que era sagrada nas casas do partido” — e bebe suplementos como o “Pim-pam-pum” ou como um suplemento de um jornal que era dedicado à mulher que a mãe lhe comprava uma vez por semana, às escondidas do pai, “contrariando uma norma” estabelecida entre ambos de “nada fazer às escondidas um do outro”.

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O entusiasmo da leitura leva-a também a ler com regularidade a imprensa do PCP. E aos 11 anos, sob o pseudónimo de Daniela, já escreve artigos na Voz das Camaradas, jornal destinado às companheiras que habitavam as casas clandestinas do PCP.

Assim, é já com prática de escrita que se atira na árdua tarefa de traduzir Pulitzer com o objectivo, claro, de retomar a aprendizagem do francês, que Domicília interrompera desde que a casa desta família no Alto de Santo Amaro deixara de servir de abrigo ao dirigente do PCP Guilherme da Costa Carvalho, que aí ficara três meses após a fuga de Peniche.

Referindo-se ao seu próprio percurso escolar, é Domicília que afirma: “Desde os oito até aos 13 anos eu não progredi nada, estagnei.” Mas é então, em 1959, que, já no Alto de Santo Amaro, retoma os estudos com a orientação de Fernanda Paiva Tomás. Esta importante militante comunista, mulher de Joaquim Carreira, viveu nesta casa de apoio do secretariado e onde funcionava a redacção do Avante!, a partir de Agosto de 1959, saindo só para dar lugar a Guilherme da Costa Carvalho, no ano seguinte. “Foi a Fernanda que me começou a dar aulas de francês e também um pouco de português, ela tinha pouca paciência, com o companheiro preso e o filho afastado dela”, recorda Domicília.

Já com Costa Carvalho e beneficiando do facto de as regras de segurança comunistas implicarem que os dirigentes de topo só se movimentassem na rua depois de o sol se pôr, Domicília irá prosseguir na aprendizagem do francês. E recorda as tardes com Costa Carvalho, deitado em cima da cama, a ler-lhe, “em francês e espanhol, a revista Paz e Socialismo”.  Foi então que estudou os manuais de escola comprados pelos pais e decorou “os verbos em francês como tinha decorado em português” e garante: “Falávamos de tudo, realmente ele dava-me um grande apreço.”

O ambiente da clandestinidade e as relações que se desenvolviam eram, de facto, fortes. Domicília não só não o nega como antes o afirma: “Eu sou muito afectiva e queria aos camaradas como se exactamente fossem a minha família. Tinha cortado com a minha família aos sete anos. Eu realmente ganhei amizade à Fernanda.”

Uma forte relação de amizade estabelece-se de seguida com Guilherme da Costa Carvalho: “Digo que ele foi o meu melhor amigo, esteve em nossa casa dois ou três meses, depois saiu para juntar-se à companheira [Albertina Diogo] e depois foi preso. Só o voltei a ver em 1972, pouco antes de morrer, tinha sido libertado.”

O reencontro com Guilherme da Costa Carvalho dá-se já Domicília vivia em Paris e vem, nas suas primeiras férias legais, ao Porto. Casada já então em Paris com Joaquim Soares Santos Júnior — “não é da família do Santos Júnior, que aliás o chegou a prender”, esclarece —, pai dos seus dois filhos e que conhecia várias figuras da oposição no Porto. Entre elas, o pai de Guilherme da Costa Carvalho. E é assim que se organiza o reencontro entre ambos: “Sei que me encontrei com ele na praia, em Agosto de 1972, onde eles tinham casa, para aí em Valadares ou Francelos, sei que foi em Gaia. Foi um encontro muito breve, um quarto de hora ou isso. Soube a muito pouco. Não deu para grandes coisas. Ele já não tinha cabelo, ele tinha um cabelo muito lindo, como o da minha mãe, com um biquinho à frente. Via-se que estava muito doente, mas nunca pensei que era a última vez que o via. Já não sei se era ele que estava com pressa se nós, por causa dos transportes. Quase não falámos. Passados meses, a minha mãe disse-me que ele tinha morrido.”

Uma história do tempo em que até os gatos eram clandestinos

É com inegável boa disposição que Domicília conta a história da viagem que fez para o Porto, no início de 1961, de comboio, acompanhada da “Roni”, a gata clandestina: “A gata aflita porque queria ir à casa de banho e não podia. Nessa altura, não era permitido levar animais com as pessoas, então a pobre da bicha ia ali, coitadinha, muito caladinha, mas começou a ficar muito aflita e começou a miar. O sujeito que ia ao nosso lado começou a olhar para todos os lados. Ouvia-se a gata a miar, mas não se ouvia muito porque os comboios nessa altura faziam muito mais barulho. E a desgraçada começou a deitar a pata de fora e a agarrar qualquer coisa, era a calça do homem. [Risos]. Estava aflita, só quando chegamos ao Porto e abrimos a pasta é que vimos que a gata tinha sido obrigada a evacuar ali mesmo dentro, coitada. Até a pobre da gata sofreu.”

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O ambiente da clandestinidade e as relações que se desenvolviam eram, de facto, fortes. Domicília não só não o nega como antes o afirma: “Eu sou muito afectiva e queria aos camaradas como se exactamente fossem a minha família”

Uma gata que entrou na vida desta família e gozou de estatuto especial, depois de ter sido adoptada, por volta de 1956, quando viviam e mantinham a tipografia clandestina na casa da Vila Nova da Caparica. Diz Domicília Maria que esta adopção se deu como compensação de os seus pais terem decidido não ter mais filhos. “Já era crescida, naquela fase de começar a interessar-me por crianças, eu pedia aos meus pais que me dessem um irmão, uma irmã, qualquer coisa, não queria ser filha única. Eu creio que terá sido essa a razão fundamental por que eles conservaram a gata. E depois, ao fim de anos, não a iam abandonar. Eles achavam que não deviam ter mais filhos, isso só iria complicar a vida deles e da criança, não queriam que outra passasse por aquilo que eles sabiam que eu estava a viver. Deve ter sido por essa razão que eles decidiram andar com a gata, por quartos e... Normalmente, era eu que levava a gata numa pasta, ninguém sabia o que levava ali.”

Assim, cada vez que havia mudança, lá ia Domicília de pasta na mão e a gata dentro. E conta: “Saímos da Cova da Piedade para Almada, tínhamos vivido na Cova da Piedade dois anos e tínhamos uma gata que tínhamos trazido da casa anterior, uma gata abandonada. O meu pai teve pena, deu-se de comer, ela dormia na cama. Quando chegou a altura de mudar, a gata lá foi. Só que quando fomos para Almada, foi uma saída de emergência, disseram: ‘Fulano foi preso e pode ter falado de vós.’ O meu pai alugou uma casa perto do Cristo-Rei, mudámos no dia da inauguração do Cristo-Rei e levámos a gata. Só que a gata já era muito conhecida e também deixou de ir à rua. Nem à janela podia ir, como estávamos perto, podia passar um vizinho e reconhecer a gata.”

Fuga precipitada que os leva a Almada, em Maio de 1959, mas onde a tipografia fica só três meses. E com um susto pelo meio, numa época em que Blanqui Teixeira era o controleiro, depois de esta tarefa ter sido desempenhada por Júlio Fogaça e por Afonso Gregório. Relata Domicília: “Um dia, [em Almada], a minha mãe estava à janela. E viu um carro parado à porta. Ela foi apercebendo-se, ao longo das horas, de que o carro estava à espera. Os meus pais não devem ter dormido nada. Não sei se foi naquela noite, se na seguinte, eu saí com a minha mãe a dar uma volta a ver se o carro tinha desaparecido, se ia atrás de nós. O carro estava noutra rua. No dia seguinte de manhã, embalámos tudo. Era Verão, eu vesti camisolas em cima de camisolas. Vamos ver se safamos esta, pensaram os meus pais. Foram pôr-me em casa de uns camaradas legais que viviam a uns quilómetros bons e a gata ficou a ter filhos. Os meus pais voltaram. Não deixavam a casa, estava lá a tipografia. Não aconteceu nada.”

É durante esses oito dias que Domicília convive, em Vale de Milhaços, em Corroios, com um casal que, no passado, tinha servido a seu pai para canalizar os jornais clandestinos impressos por si. “Ele era operário, ela trabalhava no campo. Tinham três meninos pequeninos. Era uma casinha de chão de terra batida com uma só dependência, quarto, sala, tudo. Um dormia no berço. Um foi para a cama dos pais e dormi com um deles.” É com gratidão que Domicília fala deste casal, cuja mulher “teve a preocupação de comprar manteiga, partindo do princípio de que a menina estava habituada a comer manteiga”, e remata comovida: “Ela não comprava manteiga para os filhos e comprou-a para mim.”

Depois dessa semana, voltaram a buscá-la. A casa ao pé do Seminário do Cristo-Rei estava segura. Mas, pelo sim, pelo não, “a tipografia ficou com a gata” e os três foram “supostamente de férias para a Trafaria”. Passado um mês, como a casa continuava sem ser assaltada pela PIDE, os pais de Domicília voltaram lá, pegaram nas coisas e mudaram-se para Lisboa. Com a gata na pasta. Uma viagem feita de cacilheiro relatada por Domicília: “Estávamos à espera, com as malas da tipografia, do barco para vir para Lisboa e apareceu um GNR. O meu pai foi meter conversa com o guarda, antes que ele fosse perguntar o que estava nas malas.”

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