Hambúrgueres e pensamentos errados

Sonhei que tinha um pensamento do lado errado da cabeça. Deveria ocupar o hemisfério esquerdo do cérebro, mas assentava à direita, esquisito, como uma luva na mão oposta.

Dormi mal e acordei estranho, com vontade de comer um hambúrguer - um pecado cardio-ecológico. É perdoável, mas não pela manhã.

Desconversei mentalmente e fui ver as notícias. A confusão continuava a reinar na arena política. O líder do partido que perdeu as eleições exibia ares de triunfo, curioso paradoxo. Aparecia em todas as fotos, reluzente, com pose de Estado. Os adversários, embora vencedores, nem se viam. Por um momento julguei que ainda dormia.

As histórias de ciência acabaram por exercer maior poder gravitacional. A primeira a surgir veio logo a gosto: era sobre hambúrgueres, mas artificiais, feitos em laboratório, a partir de células estaminais. Já antes tinham sido anunciados, fritos e ingeridos, numa cerimónia experimental que não deixou muitos a lamber os beiços. Agora, os autores da invenção garantiam que dentro de cinco anos a iguaria sintética estaria no mercado e ninguém resistiria à tentação de lhe dar uma trinca.

O objectivo, além de ganhar dinheiro, é criar uma alternativa à vaca, o pacato animal que injustamente tem granjeado a reputação de vilão anti-planeta. Para que saciem a fome de sete mil milhões de almas humanas, é preciso gastar água, derrubar florestas, criar pastos e arcar com as consequências gasosas da sua digestão. Mas culpa não é delas, é claro, e sim nossa.

O hambúrguer de proveta, diz a propaganda, ganha ao seu primo animal por knock-out. A sua produção consome 45% menos energia, emite 96% menos gases dos que aquecem o planeta e necessita menos 99% de espaço. O restante 1% deve corresponder à bancada do laboratório, cientista incluído.

Descontadas as entranhas, os ossos, a gordura e tudo o mais que não interessa meter entre duas fatias de pão, resta carne suficiente num boi para confeccionar entre 1000 a 1200 hambúrgueres. Se se conseguir, só com as células do umbigo do bicho, chegar ao mesmo número, então está resolvido problema da fome mundial.

E com esta tola simplificação ficaríamos conversados, não fossem todas as reticências e pontos de interrogação que atrás dela se escondem. Afinal, uma solução milagrosa nunca vem desacompanhada de consequências imprevistas. E tendo as células estaminais a capacidade de se transformar em diferentes tecidos, nada nos garante que em vez de hambúrgueres não teremos dobrada.

Por ora, a previsão de cinco anos até haver hambúrgueres estaminais nos menus do dia-a-dia é um clássico exercício de optimismo mercantil. Se e quando isto acontecer, teremos mais uma etapa na controversa história deste espécime alimentar, que passa pelos guerrilheiros mongóis, e pelo seu hábito de esmagar a carne sob a sela dos cavalos, e pelos tártaros, cujo modelo de bife moído cru possivelmente foi um dia deixado ao sol.

Para o novo passo, será preciso superar a parede ética que usualmente se ergue diante de novidades que não entendemos. Não se trata apenas de excesso de zelo. Com tanta porcaria que já fizemos no passado, vale a pena pensar duas vezes.

Com essas ideias a reverberar na minha cabeça, eu já me esquecera do sonho do pensamento errado e perdera o rasto da confusão pós-legislativas. À hora do almoço, preferi ficar com os pesticidas e optei por uma salada. 

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