A força política da música em Angola

Nos últimos dias o rapper Ikonoclasta, ou seja Luaty Beirão, em greve de fome, tornou-se no símbolo da luta pela liberdade de expressão em Angola, sintoma de que naquele país o protesto se faz com música.

No início de Setembro, o rapper angolano MC Kappa (MCK), ou seja Katrogi Nhanga Lwamba, 34 anos, formado em filosofia e a estudar direito, uma das vozes críticas do regime angolano, dava o primeiro concerto em nome próprio em Lisboa, na sala MusicBox. 

No mesmo espectáculo participou Bonga, símbolo da música popular de Angola, insurgindo-se contra a detenção dos 15  activistas presos em Luanda em Junho. Às tantas, bruscamente, ao segundo tema, a música calou-se. Pensou-se em problema técnico. Mas não. Segundos depois MCK explicava que a canção havia sido simbolicamente suspendida porque nela originalmente entrava o rapper luso-angolano Ikonoclasta, um dos detidos.

Mais tarde, no mesmo concerto, também a cantora Aline Frazão haveria de se referir ao rapper, recordando que haviam estado juntos naquele palco alguns meses atrás. Nessa altura Ikonoclasta, ou seja Luaty Beirão, 33 anos, ainda não havia iniciado a greve de fome que dura há 25 dias, como protesto pela detenção preventiva que se prolonga desde Junho. Nos últimos dias o seu nome tornou-se símbolo da luta pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos em Angola, mas na verdade há muito que é inspiração para muitos insatisfeitos com o regime angolano.

Foi ele quem liderou as primeiras manifestações contra o governo de José Eduardo dos Santos em 2011, no auge da chamada Primavera Árabe. No meio do rap, de onde são originários muitos dos detidos, é admirado. O que não surpreende. Para todos eles o rap é música, informação, conhecimento e forma de protesto. 

Tal como não espanta que a primeira reacção aos acontecimentos tenha surgido em Portugal, em Julho, com uma série de personalidades afectas aos meios culturais – como os escritores José Eduardo Agualusa e Ondjaki, os músicos Kalaf (Buraka), Pedro Coquenão (Batida) e Paulo Flores ou o artista e músico Nástio Mosquito, a darem a cara no vídeo-manifesto Liberdade Já!

Existem como é evidente, entre todos, origens, percursos e motivações diferenciadas. Mas há linhas que se cruzam, como o facto de estarem muitos deles na casa dos trinta anos, de terem estudado na Europa e de pertencerem a famílias com ligações às elites angolanas. Não possuem uma visão consensual sobre o poder angolano, mas une-os essa ideia de que o regime tem de revelar mais abertura e tolerância nesta fase, ao mesmo tempo que todos eles utilizam – de formas diferenciadas – as suas ferramentas artísticas para reflectir, questionar ou revindicar.

O que é curioso é que este cenário ocorre quando na maior parte das sociedades contemporâneas europeias se fala da diluição da importância política da música e das artes em geral. Nos anos 60 era a coisa mais normal do mundo ouvir um músico dizer que queria mudar o mundo. Hoje quando um músico profere qualquer coisa de semelhante é apelidado de ingénuo ou arrogante, como se existisse um ambiente de paralisia cultural, no espaço do qual a música se foi desligando aos poucos das nossas experiências.

Pelo contrário, noutros contextos, como o angolano, é em grande parte através da música que as lógicas de protesto são veiculadas. Por norma rappers como Ikonoclasta, Carbono ou MCK operam ao largo dos contextos tradicionais, criando o seu próprio circuito semiclandestino, fora da órbita mais mercantil da kizomba ou do rap americanizado, mas capaz de chegar a milhares de pessoas. 

E não é apenas através do rap e da palavra que a música participa em dinâmicas de transformação políticas. Mesmo quando a música não é frontalmente politizada pode antecipar, promover ou reflectir desejos de mudança. É o que acontece com tipologias como o kuduro, música em grande parte dos excluídos onde a palavra é mais performance, mas onde o som acaba por representar também desejos de transformação, como se fosse a manifestação de uma verdade que já existia, mas que ainda ninguém, de forma colectiva, conseguira expressar.

Por norma o papel de intervenção da música é tanto mais eficaz emocionalmente quanto o que se quer pôr em causa está perfeitamente identificado. No caso de Angola esse elemento central é o regime personificado por José Eduardo dos Santos.

Há dois anos, em entrevista ao músico inglês Matthew Herbert, este dizia-nos que a generalidade da música pop ocidental se havia tornado indulgente, incapaz de pensar as convulsões sociais e políticas do mundo. Apontava culpas a um certo aburguesamento, mas também reflectia que o contexto político se havia tornado difuso, dificultando a identificação do antagonista.

“Nos anos 60 sabíamos que poderes Lennon ou Dylan queriam afrontar, hoje tornou-se tudo mais complexo. Vemos o que se passa na China ou na Rússia e reagimos emocionalmente ao que nos é dado a ver, porque nos parece evidente, e nesse processo acabamos por nos esquecer que, aqui, a nossa liberdade é também ela parcial e maquilhada, de formas mais subtis, mas devendo ser também desmascaradas. É esse o papel dos artistas.” 

Em Angola a música, ou pelo menos alguma música, fala directamente aos não inscritos na sociedade. As letras de rappers como MCK ou Ikonoclasta estão carregadas de interpelações aos cidadãos ou ao governo, com ênfase na crítica social e na denúncia de injustiças. “Os diamantes são deles / O petróleo é deles / A imobiliária é deles / A banca é deles”, lança MCK em O país do pai banana, mostrando sem equívocos que aquilo que já cantava na abertura do álbum Nutrição Espiritual (2006) era para ser levado a sério: “a música é um instrumento de luta.” 

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