Hospitais fazem duas vezes mais urgências do que primeiras consultas

Portugal tem o dobro das urgências de países como o Reino Unido e a situação não se alterou em sete anos.

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"São cada vez mais recorrentes os relatos de mortes de doentes triados com a pulseira verde nos hospitais", escreve a Ordem dos Médicos NUNO FERREIRA SANTOS

Em época de crise, entre 2008 e 2014, a procura dos serviços de urgência dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) continuou muito elevada. Em sete anos, apesar do grande aumento das taxas moderadoras, os atendimentos em serviços de urgência hospitalares diminuíram apenas 0,3%. São cerca de 17 mil episódios de urgência por dia, quase o dobro das primeiras consultas e o equivalente a 53% das consultas externas, revela o estudo Desempenho clínico dos hospitais do SNS em 2008 e 2014 que esta quarta-feira é divulgado pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS).

Elaborado pela consultora multinacional de origem espanhola Iasist a pedido do Ministério da Saúde (MS), o estudo passa em revista a evolução, de 2008 para 2014, de vários indicadores da actividade de 45 hospitais públicos, incluindo os quatro construídos em parceria público-privada (Loures, Vila Franca de Xira, Braga e Cascais), além das duas unidades de saúde mental (Júlio de Matos e Magalhães Lemos) e dos três institutos de oncologia (IPO).

“Tendo em conta que Portugal apresenta o dobro das urgências de países como o Reino Unido (National Audit Office, 2013), estes são números manifestamente exagerados e bem reveladores da magnitude do problema das urgências”, destacam os autores do relatório, enquanto lembram que, em 2014, invertendo uma tendência de vários anos, as urgências até cresceram 1% em Portugal.

"O ideal teria sido analisar uma série temporal e não apenas os anos de 2008, 2013 e 2014", como é feito neste estudo, admite o director-geral da Iasist em Portugal, o antigo presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, Manuel Delgado, para quem o facto de não haver "alterações significativas” na procura dos serviços de urgência vem comprovar que o modelo do SNS “não foi mexido no essencial”. Basta ver que quase dois terços (70%)  das admissões para internamento nos hospitais ainda se fazem pela via da urgência.

Os hospitais de maiores dimensões, os centrais, são uma excepção a este nível. Mas, mesmo face à redução na procura das urgências aqui observada, os consultores são cautelosos: este “sinal positivo deve ser acompanhado com atenção em futuras avaliações, para perceber se se tratou ou não de uma mera evolução conjuntural”.

De resto, nestes anos de crise, os hospitais públicos demonstraram "uma evidente resiliência no seu funcionamento e na sua organização”, independentemente das maiores ou menores dificuldades de acesso dos cidadãos, concluem os autores do relatório, avisando que a variável do acesso “não cabia” nesta análise de desempenho. “Esta é uma fotografia tirada do avião, não olhamos para pormenores, analisamos o que os hospitais fizeram, não o potencial de procura”, esclarece, a propósito, Manuel Delgado.

O objectivo do Ministério da Saúde era, aliás, o de perceber se a crise económica e social que o país tem vivido nos últimos anos teve ou não repercussões na actividade hospitalar e neste estudo a Iasist trabalhou com a base de dados dos grupos de diagnóstico homogéneos (GDH) e do movimento assistencial da Administração Central do Sistema de Saúde.

Cirurgia ambulatória cresceu 63%
Num contexto em que os doentes são mais idosos (a população com mais de 65 anos representava um quinto do total em 2014) e os médicos mais exaustivos e rigorosos nos registos, os dados do estudo indicam que os hospitais conseguiram "melhorar os resultados" e também "a qualidade dos cuidados prestados" nalguns domínios, com destaque para a cirurgia ambulatória, que cresceu 63% neste período.  Também a qualidade clínica evoluiu positivamente.

Sobre a evolução da cirurgia de ambulatório, esta foi de de tal forma relevante que se propõe que deveria, agora, ensaiar-se a passagem para um conceito "mais exigente (sem pernoita)”. Actualmente, a cirurgia de ambulatório inclui a permanência até 24 horas dos pacientes nos hospitais, podendo implicar que o doente passe a noite na unidade de saúde.

Os resultados provam ainda que, neste período, as camas nos hospitais de agudos diminuíram 7,1% (passaram de 22.316, em 2008, para 20.736, no ano passado), um fenómeno que foi muito mais expressivo nos hospitais universitários. Em contrapartida, frisa-se no estudo, as camas nos cuidados continuados integrados cresceram 250% entre 2008 e 2014 (de 2870 passaram para 7160). 

A diminuição de camas para doentes “agudos” (hospitalares) foi, assim, compensada pelo crescimento da rede de camas de cuidados continuados, na “razão de 1 para 2,7”, argumentam os consultores, notando que há “um efectivo aumento de camas” que resulta num “maior equilíbrio na sua distribuição entre os dois sectores”. Ainda assim, o número de camas de cuidados continuados continua muito aquém do que tinha sido projectado quando esta rede foi lançada, há uma década. Mas Manuel Delgado frisa que a relação entre a perda de camas nos hospitais e o ganho nos cuidados continuados é "muito favorável".

Um indicador que vem levantar algumas questões é o do número de doentes saídos dos hospitais por mil habitantes, que baixou (de 92,7 em 2008 para 86,3 no ano passado). Os dados “não correspondem ao que seria expectável face ao envelhecimento e à maior gravidade e complexidade inerentes ao tratamento de pessoas mais idosas” (a idade média dos doentes subiu globalmente cerca de quatro anos), enfatizam os consultores. Uma situação que, ponderam, pode ser explicada por dois factores, um eventual desvio da procura para o sector privado e o “aumento de necessidades não expressas por razões económicas e sociais”.

Ainda assim, a complexidade dos doentes tratados em internamento aumentou entre 2008 e 2014, em parte fruto da maior exaustividade no preenchimento dos processos clínicos pelos médicos, mas também, supõe-se, do efeito conjugado do envelhecimento, com a diminuição da actividade na área materno-infantil, com a "desnatação" exercida pelo sector privado e graças ao facto de os procedimentos cirúrgicos menos complexos serem feitos em ambulatório, explicam. 

Simultaneamente, nestes anos, enquanto houve hospitais com taxas de ocupação inferiores ao recomendável (menos de 75%), outros apresentaram valores muito elevados “reveladores de uma forte pressão da procura em certos períodos do ano”. Por isso, os autores do relatório sugerem a revisão das lotações e das áreas de influência dos hospitais (“ou até a sua existência)”.

“Se tenho hospitais com uma taxa de ocupação inferior a 75%, isso significa que 25% das camas estão vazias, apesar de os custos fixos permanecerem iguais”, e explica o responsável da Iasist. Olhando para os outros hospitais, acrescenta, “também não é bom” haver taxas superiores a 100%”. Como se resolve uma situação aparentemente paradoxal? Redistribuindo as camas, propõem.

Os hospitais analisados apresentam um comportamento muito variável quanto a a alguns dos indicadores. Nos hospitais centrais, por exemplo, já se verificou uma redução significativa de camas, ao que tudo indica em resultado dos ajustamentos na distribuição de áreas populacionais e das fusões realizadas. 

Qualidade clínica melhorou
De 2008 para 2013, a qualidade clínica evoluiu “muito positivamente", com os índices de mortalidade, de complicações e de readmissões (ajustados ao risco) a apresentarem melhorias, sublinham os autores do estudo. No ano passado, estes bons resultados mantiveram-se, à excepção dos índices de mortalidade nos IPO (institutos portugueses de oncologia), o que se poderá explicar-se com alterações de natureza administrativa .

Em sentido inverso, as taxas brutas de complicações nos hospitais públicos passaram de 2,8% em 2008 para 3,5%, em 2014. Sobre a “segurança do doente”, não foi possível, porém, chegar a conclusões, por causa do "subregisto" das complicações e outros acontecimentos adversos, notam os autores, apesar de sublinharem que os registos médicos melhoraram sensivelmente nos últimos anos. No ano passado, fizeram-se 1,7 milhões de diagnósticos.

Apesar de ainda exibirem valores muito elevados no contexto europeu, as taxas de cesarianas apresentaram também “uma discreta melhoria”. Representavam 28,8% do total no ano passado, quando em 2008 eram um terço (33,5%). Aqui, as unidades locais de saúde apresentarem piores resultados, ao contrário do que seria de esperar.

Na saúde mental, verificou-se um aumento das altas nas unidades integradas em hospitais gerais, ao mesmo tempo que se registava uma diminuição nos hospitais psiquiátricos, o que corresponde também  “à evolução esperada” neste sector. Também as admissões programadas em saúde mental aumentaram “significativamente", o que “é sinónimo de maior capacidade de intervenção precoce e mais oportunidade e adequação nos processos de internamento destes doentes".

O estudo está disponível no site da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), não no Portal da Saúde

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