O autor morre quando põe o ponto final. O leitor nasce a seguir

Alberto Manguel não é um escritor, é um leitor que faz da sua escrita a experiência de uma vida de leitura, a partir de uma biblioteca universal onde procura palavras para formular melhor as perguntas necessárias. Conversa no centro do seu mais recente livro, Uma História da Curiosidade.

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Patrícia Martins

A capa, um conselho de amigo, uma crítica, um título ou as palavras de alguém como Toni Morrison, a Nobel da Literatura de 1993, podem levar Alberto Manguel a ler um livro pela primeira vez e a retirar-se da actividade a que dedica a maior parte do seu tempo: a releitura. Aos 67 anos, o homem que se define antes de tudo como leitor mas que é escritor, tradutor, ensaísta, poliglota (um argentino que tem o inglês como primeira língua, aquela em que escreve) continua a ter como satisfazer a curiosidade em páginas já muitas vezes lidas. Chama-lhe um regresso à infância, como quando a criança pede que lhe leiam a mesma história inúmeras vezes sem que nunca se canse.

Mas a releitura não o limita. Por exemplo: é por causa de Toni Morrison que está a ler um livro que considera central para entender a sociedade actual, e em particular os Estados Unidos, o país para onde se mudou recentemente com a sua imensa biblioetca, depois de viver durante anos num presbitério no Sul de França. O livro chama-se Between the World and Me e foi escrito por Ta-Nehisi Coates. Morrison viu nele a herança de James Baldwin. Com Alberto Manguel a conversa poderia começar por qualquer tema. Começa por este livro, portanto pelo racismo, e viaja por toda a literatura a partir da curiosidade sobre o mundo, que de resto dá título ao seu novo livro: Uma História da Curiosidade

Escolheu a palavra curiosidade para definir o impulso humano de saber e de se relacionar com o outro, num livro que é o resultado de uma experiência muito pessoal: a sua enquanto leitor.
Curiosidade é a qualidade que define quem sou. Creio também que é uma qualidade essencial ao ser humano. Sobrevivemos no mundo tentando entender quem somos e o que é o mundo, e fazemos isso através de perguntas, através da curiosidade.

Há uma continuidade entre Uma História da Leitura (Presença), Dicionário dos Lugares Imaginários (Tinta-da-China) e este Uma História da Curiosidade. Todos falam de experiências de leitura.
Sim, todos o meus livros, de alguma maneira, são sobre o leitor, porque isso é o que eu sou. 

A autobiografia de um leitor?
Todos os meus livros são autobiográficos, porque encerram quem sou como leitor. Nunca quis ser escritor. Em adolescente, quando escrevia os meus primeiros textos, dava-me conta de que não tinham a qualidade da literatura de que gostava e então a certa altura disse a mim mesmo que não iria escrever, mas sim tentar ler melhor. Borges disse que um escritor escreve o que pode mas um leitor lê o que quer, e é nisso que reside a diferença essencial entre escrita e leitura. Os meus primeiros livros nascem da minha vontade de ser leitor. 

Este parte da ideia do saber enquanto grande impulso para o que é o homem.
Sim, é a pergunta básica quando vimos ao mundo: “quem sou eu?”

Como é que a leitura pode ajudar na resposta?
A leitura permite-nos por vezes encontrar as palavras para perguntar melhor quem somos.

Falava do sentimento do escritor, do fracasso diante do acto de escrita. De que modo o fracasso pode atingir o leitor, quando ele sabe que um livro não lhe dá a tal resposta, mas mesmo assim a persegue na leitura? De onde vem a frustração do leitor?
A linha paradoxal está tanto na escrita quanto na leitura. Quando lemos um livro que nos dá todas as respostas, o livro defrauda-nos porque ou é dogma ou má literatura. Só a má literatura é perfeita e circular e tem todas as portas fechadas. A noção de fracasso é central na obra de arte. O nosso vocabulário social faz com que acreditemos que certas palavras indiquem conceitos negativos. O difícil, o lento convertem-se em negativo. Também, e sobretudo, a noção de fracasso é a de não chegar à meta. Mas é o fracasso da obra de arte que permite a intervenção do leitor ou espectador. A grande obra de arte é uma obra que fracassa sempre, que não consegue chegar à perfeição imaginada pelo seu criador.

Isso leva-nos ao Samuel Beckett citado no livro, e à sua noção de falhar melhor…
Sim, leva-nos a Beckett e também a Dante. Dante, quando recebe a última lição de Deus, fracassa artisticamente porque ela não pode ser posta em palavras.

No livro critica a sociedade actual pela pressão que coloca em formar mão-de-obra sem estimular o pensamento. 
Vivemos numa sociedade de consumo, e numa sociedade de consumo há que consumir, e para consumir há que criar consumidores, e para criar criar consumidores há que criar cidadãos que se recusam a pensar ou que não sabem pensar; que não fazem perguntas, que não reflectem. Vemos isso todos os dias na política. Ninguém que reflicta seriamente pode eleger Donald Trump, não só pela sua posição anti-humanista face aos refugiados, aos estrangeiros, aos pobres, mas sobretudo na perspectiva da teoria económica. O atractivo de alguém como Trump — e podíamos ter centenas de outros exemplos — é o superficial. O superficial é atraente para a mente consumidora. Diante de uma personagem como Quixote, o romance de Cervantes não nos dá respostas, não nos diz se ele está louco ou não, se é uma grande personagem heróica ou um pobre iludido. Face às palavras de Cervantes, o leitor precisa de aprender a pensar, mas fazer perguntas não permite a uma sociedade de consumo desenvolver-se; então existimos numa tensão entre o que dizemos em sociedade e o que cada um de nós quer ser enquanto ser humano. 

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descoberta tardia de Dante é a última grande epifania da vida e da obra de Alberto Manguel como leitor: “Tem uma espécie de perfeição artística, que é algo milagroso” Patrícia Martins

É uma sociedade que mata a curiosidade?
Do ponto de vista da sua definição, trata de não permitir curiosidade. 

Elege Dante como uma espécie de guia por toda a literatura.
Noutros tempos poderiam ser outros livros. Elegi Dante porque nunca escrevi muito sobre Dante antes, porque cheguei a Dante tarde na minha vida, e porque sinto hoje que Dante, de alguma maneira, tem para mim mais riqueza do que as obras mais ricas que conheço.

E em que reside essa riqueza? 
A obra de Dante tem uma profundidade estética e intelectual que permite encontrar quase qualquer coisa que se possa procurar nela. Também tem uma espécie de perfeição artística, que é algo milagroso. Numa perspectiva intelectual isso pode explicar-se pela grande inteligência e pela grande capacidade de Dante para assimilar os conhecimentos da sua época e os transformar em poesia, encontrando vínculos entre os diferentes temas que aborda. Mas a beleza da Divina Comédia não se pode explicar por razões intelectuais ou técnicas. Tem algo de música, tem algo visual, tem uma beleza conceptual também. Todos esses elementos juntos são, cada um, extraordinários, mas tampouco chegam para explicar o conjunto tão extraordinário da obra. É a obra mais milagrosa da literatura universal.

Fala de uma epifania para se referir à experiência dessa leitura. É, por exemplo, ao descrever essa epifania que as palavras podem falhar?  
Li Dante muito seguido e tenho a experiência dessa epifania quase todos os dias, de alguma coisa que me foi revelada através das palavras. Borges dizia-me uma frase onde tentava explicar o que é o acto estético, o efeito estético; dizia que talvez fosse a iminência de uma revelação que não se produz. 

E continuamos no paradoxo social: o homem naturalmente curioso tem sido castigado por uma sociedade que pune a curiosidade. No livro refere Eva, que não resistiu à maçã, ou a frase popular “a curiosidade matou o gato”, como incentivos para refrear o impulso curioso.
É verdade, voltamos à tensão. A sociedade precisa de guiar a curiosidade, de a reprimir para que não vá em certas direcções. O indivíduo, apesar de tudo, insiste. Nem toda a curiosidade é a grande curiosidade de abrir a porta ao desconhecido, mas um olhar pelo buraco da fechadura. Por vezes o acto ou o impulso humano contaminam-se de uma certa mesquinhez. A curiosidade pode ser esse acto mesquinho. Mas também pode ser audaz, pode ser um acto de desafio às convenções, como no caso de Galileu ou de Darwin, que fazem perguntas.

Quais são as grandes perguntas que é necessário fazer agora a esta sociedade? 
São as perguntas que de alguma maneira formulamos na mente e logo reprimimos. Uma pergunta que faz muito sentido agora é como é possível que em tantos séculos a tentar criar uma sociedade humana justa ainda não tenhamos conseguido encontrar uma forma de o fazer? Como é possível que em tantos séculos de reflexão sobre formas de governo e formas de conduta não tenhamos encontrado um modo de viver juntos de maneira justa e feliz? Como é possível que deixemos actuar a injustiça, a cobiça desmedida, e que elejamos constantemente governos corruptos e injustos? Como é possível que não nos rebelemos contra isso?

Refere Primo Levi e a escrita do inominável que foi a história que ele viveu em Auschwitz, mas também para falar da insistência do homem no erro histórico. 
Parece que estamos sempre em frente aos mesmos problemas. Há um poema de Lorca que fala de uma batalha entre ciganos; quando um dos ciganos explica à polícia o que aconteceu, diz “aqui aconteceu o de sempre, mataram quatro romanos e cinco cartagineses”. Isso pode-se aplicar a todos os momentos da História. Estamos sempre a repetir tudo, por isso a Ilíada conta não uma matança que aconteceu há três mil anos, mas uma grande guerra que continua até aos nossos dias.

E estamos sempre a ir para a literatura, para a leitura. É porque a leitura nos pode salvar?
Não, nada nos pode salvar. Não creiamos na literatura como num Messias, ou num livro como num talismã mágico. São superstições perigosas. A literatura, no melhor dos casos, pode ajudar-nos a pensar melhor e pensar melhor pode levar-nos a fazer melhores perguntas, e fazer melhores perguntas pode levar-nos a tentar novas maneiras de viver que sejam mais fáceis de suportar. Mas não ha remédios milagrosos. 

O modo como o tempo actua nas leituras, como traz e retira perspectivas, dando obras como ultrapassadas para depois as devolver como grandiosas, é um dos temas deste livro. Que tempo é esse?
O tempo na biblioteca, como em todos os lugares, é uma invenção humana. Quando falamos do tempo na biblioteca imaginamos que a passagem dos anos faz com que esqueçamos ou recordemos uma obra, que encontremos novos elementos nessa obra. Um texto acaba quando o autor põe o ponto final, mas nesse momento é o autor que morre e é o leitor que retoma a tarefa de dar nova vida ao texto; e o texto recupera vida em cada leitura. A Odisseia que lemos hoje não é a mesma que leram ou ouviram os contemporâneos de Homero. Depois de Joyce, depois de Freud, a leitura de Homero é diferente e a imagem de Ulisses como um mentiroso ou um aventureiro foi substituída nos nossos dias pela de Ulisses como um grande refugiado. As imagens que temos visto nos jornais são as imagens de Ulisses repetidas, e se fossemos verdadeiros leitores veríamos que ilustram não apenas a Odisseia, mas as nossas próprias vidas ou as dos nossos avós ou trisavós. Somos uma espécie animal de nómadas, de refugiados, de exilados, e de cada vez que dizemos que não queremos que estes exilados cheguem esquecemos isso. Na Divina Comédia, cada vez que Dante se encontra com uma alma no Inferno, no Purgatório ou no Paraíso, é algum aspecto de si mesmo que ele encontra. Não são criaturas que não queira entender. Pelo contrário, entende-as tão bem que os pecados e as virtudes dessas almas o contaminam como nos contaminam a todos. No encontro com outro ser humano há uma permeabilidade física, uma passagem do que é um ao que é outro. Walt Whitman dizia que tudo o que ele é, o leitor é. E Borges, na dedicatória de um livro, disse ao leitor para lhe perdoar ter assinado aqueles versos. "Nuestras nadas poco diferen", disse, e “é um acaso que eu seja o autor e tu o leitor destes versos”.

Leu para Borges. Como recorda essa relação?
Conheci Borges quando era adolescente, ele era um leitor extraordinário, ajudou-me a entender muitas coisas e abriu-me muitas portas. Dava exemplos da sua própria leitura, era uma leitura muito generosa, aberta, sem hierarquias, ou com uma hierarquia igualmente repartida entre Shakespeare e Agatha Christie. Borges podia admirar certas frases de Shakespeare e detestar outras.

Escreve aqui sobre verdade e mentira em literatura através da noção de mentira poética.
O conceito de verdade foi criado pela sociedade para distinguir o que perseguimos como real do que perseguimos como imaginário. A verdade é o que consideramos real, mas precisamos da mentira poética, a mentira que diz a verdade mais profunda, para entender a realidade. Sabemos o que é uma guerra, podemos ter estado numa guerra, ter-lhe sobrevivido, mas é a Ilíada que nos ajuda a pôr essa experiência em palavras, a focá-la. A experiência concreta, material, é demasiado complexa. Precisamos da inspiração poética para extrair dessa experiência um novo sentido. O que Dante chama "errores non falsos" são as invenções poéticas que são verdadeiras num sentido muito profundo. 

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