Um partido também pode falir ideologicamente

Foi numa noite bem passada a negociar um Orçamento, que nasceu o embrião da reforma do Estado.

Ir à Soeiro Pereira Gomes e pedir um entendimento entre socialistas e comunistas que envolva um governo estável e que cumpra com as regras do euro é como ir a uma loja vegetariana e pedir para aviar um belo naco de carne. Não existe. Não se vende. E mesmo que se vendesse seria intragável e os socialistas teriam de pagar um preço tal que iriam à bancarrota. À bancarrota ideológica e à bancarrota moral e ficariam falidos politicamente. Sem créditos para voltar a pedir ao seu eleitorado, que é moderado, o voto nas próximas eleições, sejam elas quando forem.

Não se trata de diabolizar o PCP, que até desempenha um papel importante de fiscalização dos sucessivos governos no Parlamento. É verdade que os partidos mudam com os tempos: quem diria há umas décadas que os comunistas iriam escolher um teólogo e um ex-padre para ser candidato a Belém? É verdade que Raul Castro já desbravou o caminho divino ao dizer: “[Se o Papa Francisco] continuar a falar assim, um dia destes vou recomeçar a rezar e regressarei à Igreja Católica.”

Para o caso de poder estar a ser injusto com o PCP, ainda me dei ao trabalho de ir folhear o programa eleitoral da CDU e ver se mais alguma coisa tinha mudado face aos últimos 40 anos. Nas primeiras páginas defende que quer “uma nova política que rompa com a conivência e subserviência face às orientações da União Europeia, com a renegociação da dívida e a libertação da submissão ao euro e da NATO”. Desisti. Continuam a defender as nacionalizações na banca e na energia, a reposição de todos os cortes e o aumento de todos os rendimentos, salários, subsídios, prestações e pensões, tudo de uma só assentada. E como é que se paga isso tudo, sem o país ir à bancarrota? Por obra e graça do Espírito Santo. Pode ser que o ex-padre candidato presidencial interceda a favor das nossas finanças públicas.

O pior para António Costa é que não basta fazer um acordo com o PCP para garantir uma maioria no Parlamento; também precisa do Bloco de Esquerda. Um governo PS, PCP e Bloco? Quem é que ficaria com a pasta das Finanças? Mariana Mortágua? Yanis Varoufakis ao pé de Mortágua é um economista moderado.

A António Costa resta um único caminho que é o de se entender ou fazer de conta que se entende com a coligação de direita. Aliás, o acordo de governo que foi assinado esta semana pelo PSD e CDS-PP foi feito quase à medida de um entendimento com o PS e das quatro reivindicações que foram feitas pelo secretário-geral no discurso de derrota na noite eleitoral. Quando António Costa pede para se “virar a página da austeridade e da estratégia de empobrecimento”, a coligação responde com “a reposição gradual do poder de compra e o combate à pobreza”. Quando o líder dos socialistas reclama “defesa do Estado social”, o PSD-CDS repete “defender e reforçar o Estado social”. Quando o secretário-geral do PS pede para se “relançar o investimento na ciência e na inovação”, Passos e Portas respondem com “um modelo assente no crescimento do investimento privado e na inovação”. E quando Costa fala em “assegurar o respeito pelos compromissos europeus e internacionais de Portugal”, está a mostrar que do Largo do Rato mais depressa se chega à São Caetano à Lapa do que à Soeiro Pereira Gomes.

Num país onde nunca houve um Orçamento do Estado chumbado em democracia, António Costa poderá viabilizar as contas da coligação à maneira de Ferreira Leite ou à moda de Passos Coelho. Quando Manuela Ferreira Leite viabilizou o primeiro Orçamento com José Sócrates minoritário, tapou os olhos, não quis saber o que lá estava e viabilizou-o em nome do interesse nacional. Achou, e bem, que os custos de não o viabilizar seriam superiores aos de ter de aceitar esta ou aquela medida com a qual não concordava. António Costa também poderá optar pela maneira Passos Coelho que, quando era líder da oposição, e antes de viabilizar o segundo e último Orçamento de José Sócrates minoritário, exigiu contrapartidas.

Foi nessa negociação do Orçamento para 2011 que Eduardo Catroga e Teixeira dos Santos passaram uma noite em claro e, já madrugada adentro, nasceu aquilo que seria o primeiro embrião da reforma do Estado. Foi desse encontro, imortalizado no Blackberry de Catroga, que nasceu o Conselho Superior das Finanças Públicas de Teodora Cardoso. Foi esse acordo que possibilitou a reestruturação do sector público administrativo e das empresas públicas. Foi nessa altura que se decidiu fazer o levantamento dos institutos e dos organismos da administração central, local e regional que seriam fundidos ou extintos. Foram Teixeira dos Santos e Catroga que combinaram renegociar as concessões e as PPP que davam lucros astronómicos ao sector privado. E obrigar o Estado e a empresas públicas a pagar aos fornecedores em 60 dias para não asfixiar a tesouraria das empresas privadas. Aventou-se também pela primeira vez a possibilidade de se baixar a TSU paga pelas empresas, caso as condições orçamentais o permitissem. Uma bandeira que ainda hoje PS e PSD carregam.

Tudo isto foi conseguido através da negociação de um único Orçamento do Estado, na casa de Catroga, às tantas da madrugada. Imagine-se o que se conseguiria se todos os Orçamentos tivessem de ser negociados, com responsabilidade e bom senso.

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