Não bastam apelos, é preciso agir contra a abstenção

É ridículo que num país cujas autoridades há muito se mostram tão exigentes quanto à utilização de meios informáticos na administração pública e na relação desta com os cidadãos, ao ponto de em muitas situações essa exigência ser desproporcionada face à larga faixa de info-excluídos ainda existente na sociedade portuguesa, aquelas nunca terem dado sinais de um verdadeiro empenho em tornar possível o voto electrónico.

Depois de uma campanha eleitoral que acabou, mais uma vez, com lancinantes apelos à participação eleitoral dos cidadãos e num dia como o de hoje, em que a sensação de urgência dessa participação está tão presente, é inevitável não pensar em todos aqueles que querem votar e não o conseguem fazer. O Portugal da máquina fiscal sofisticada, do sistema de portagens tão cobiçado lá fora e que foi capaz de conceber uma das melhores redes multibanco do mundo dá-se ao luxo de continuar na pré-história no que ao sistema de votação diz respeito. Com desculpas esfarrapadas sobre a dificuldade de garantir a livre expressão da vontade de cada eleitor, como se não houvesse já um pouco por todo o mundo inúmeros exemplos de que a liberdade e a democracia não saem beliscados pelos meios electrónicos em qualquer sufrágio.

Ora, num país com uma diáspora como a nossa, com portugueses espalhados pelos quatro cantos do globo, e em que os níveis de abstenção são cada vez mais preocupantes, a não adopção de um sistema de voto mais amigo do cidadão é condenar milhares de cidadãos ao ostracismo eleitoral, não lhes permitindo o exercício de um dos seus direitos mais importantes e decisivos, que é votar. E isso está a atingir limites assustadores, quer por incúria da máquina, cujo exemplo maior brada aos céus — o Ministério da Administração Interna esqueceu-se de colocar a palavra “Portugal” no destino dos envelopes disponibilizados para o envio de votos por correspondência —, quer pela má formação de funcionários ou pela diminuição dos recursos, designadamente da rede diplomática. Um olhar displicente sobre esta realidade pode enganar incautos, mas não invalida a tragédia daí decorrente.

Falar da importância do voto e objectivamente contribuir para dificultar o seu acesso é dar os sinais errados. E isso é ainda mais perturbador quando se trata de emigrantes ou de jovens expatriados, milhares e milhares deles altamente qualificados ou em formação, que se sentem dispensados de participar no futuro do país. As consequências perigosas daí decorrentes exigem que o poder político tome medidas urgentes para colmatar esta falha grave no exercício da democracia.

Como é dito no texto que corre por estas páginas (“Os caminhos e as armadilhas do país que vai a votos”, de Manuel Carvalho), o Portugal de hoje não é o mesmo país de há quatro décadas. Mesmo arrastando problemas endémicos de que ainda não nos conseguimos livrar, “fizemos em 40 anos o que outros países levaram dois ou três séculos a fazer”, segundo o professor Júlio Pedrosa, no mesmo texto. Mas não basta e há batalhas inadiáveis na economia, na reforma das instituições, na demografia, sem as quais é impossível “dar o salto”. Todos não seremos bastantes para estes desafios e por isso é fundamental mobilizar tanta gente capaz, cá dentro e lá fora, que quer participar.

O texto “Há jovens no estrangeiro que querem votar, mas o sistema não os deixa”, assinado pelo Pedro Guerreiro, na nossa edição de 24 de Setembro, é o exemplo claro desse desejo de não ficar de fora. Apelos piedosos à abstenção não passam de folclore. É preciso agir! E só uma acção no sentido do fortalecimento da democracia fará renascer a esperança capaz de transformar os tristes 41,1% da abstenção de 2011 nos luminosos 8,34% de há 40 anos.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários