Mapa estelar

Uma história familiar que atravessa o século XX, traçando os contornos conturbados de um tempo e de um espaço na Europa Central

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No seu primeiro romance, Katja Petrowskaja reflecte a sua própria desorientação perante uma árvore genealógica com demasiados mortos, vítimas cruzadas do anti-semitismo e do terror soviético

Talvez Esther é o primeiro romance de Katja Petrowskaja (Kiev, 1970), escritora de língua alemã (a viver em Berlim desde finais dos anos 1990) nascida numa família judia ucraniana. A autora passou grande parte da infância em Kiev, num “bloco de apartamentos novo” de um bairro que nasceu a seguir à Segunda Guerra Mundial “e que parecia não ter passado, só um futuro limpo”, como refere a narradora, que foi, como ela, também “criada na família dos povos irmãos da União Soviética”. O romance, dividido em seis capítulos, é composto de pequenas narrativas (nem sempre alinhadas de maneira cronológica) que aos poucos vão compondo um quadro genealógico quase sempre ligado à perseguição dos judeus ucranianos e polacos (um ramo da família veio de Varsóvia) durante o século XX; uma espécie de “mapa estelar” da estrela de David e da estrela soviética.

Numa estação de comboios em Berlim, a narradora inicia o romance esperando o Expresso de Varsóvia; é o começo de uma viagem literária, de uma história que vai de Kiev ao campo de concentração de Mauthausen, da velha Varsóvia a Auschwitz, e ainda com breves passagens por Viena, por aldeias húngaras, por Moscovo, e por Oak Ridge (nos EUA); um caminho que a narradora vai percorrer sempre acompanhada pelas memórias de parentes, quase todos já mortos: um avô “revolucionário que foi para os bolcheviques e na clandestinidade mudou de nome”, um outro avô, Vasily, “que foi para a guerra e só 41 anos mais tarde voltou” (depois de um campo de concentração e de um gulag), a avó Rosa, que mais de meio século depois de ter deixado de falar iídiche começou a cantar nessa língua ao ouvir um disco, um tio-avô que disparou em Moscovo sobre o embaixador alemão pouco antes do começo da guerra, uma bisavó que talvez se chamasse Esther, e muitos outros. Esta é uma viagem através de lugares e de tempos agora vazios, e que a autora vai preencher com referências dispersas, com rumores desenterrados das memórias dos mais velhos, e também com os poucos documentos encontrados em arquivos que sobreviveram ao “esquecimento” provocado pelo fogo (como aconteceu com muito do que se relacionava com os seus familiares da Varsóvia de antes da guerra).

A narradora confessa, ao começar a narrativa, que quis “chamar à vida demasiados mortos” sem ter para isso definido antes uma estratégia. Essa pretensa “desorganização” (tenha ela sido propositada, ou não) é evidente no primeiro capítulo de Talvez Esther — nos seguintes tudo parece já encaixar-se no capítulo inicial e até aclará-lo — e ainda a assumida falta de memórias e de documentação trazem ao leitor a dúvida sobre a possibilidade do projecto a que a narradora se propõe. Mas é exactamente essa dúvida — que logo se instala como uma constante, como uma espécie de centro do romance —, esse aparente vazio que a História só por si é incapaz de preencher, que vai oferecer à narrativa múltiplas possibilidades literárias; Katja Petrowskaja mostra ter sabido aproveitá-las bem. Ao tentar preencher os hiatos nas narrativas das vidas dos seus familiares mortos, ao salvá-los do esquecimento, a narradora (que em tudo se confunde com a autora) assume a função de carregar e de preservar as suas histórias. “História é quando de repente já não há mais ninguém a quem perguntar, só restam fontes. Eu já não tinha mais ninguém a quem pudesse perguntar, alguém que ainda se lembrasse daqueles tempos. O que me restava: farrapos da memória, anotações duvidosas e documentos em arquivos distantes […]. Senti que me fora entregue a História.”

Ao longo de sete gerações (cerca de 200 anos), a família da narradora ensinou crianças surdas-mudas e fundou escolas na Áustria, na Hungria, em França, na Ucrânia, na Rússia e na Polónia. A vocação familiar de dar uma linguagem (no caso, gestual) aos que não a tinham é explorada no romance como uma metáfora para a própria função da narradora, que ao desenterrar as memórias de antepassados os faz de novo regressar com os seus gestos, acabando por contar mais do que aquilo que disseram em vida. Passa-se isso, por exemplo, quando a narradora fala da sua primeira viagem à Polónia, possibilitada pela Perestroika, no Verão de 1989, e de um disco de músicas antigas que ofereceu à avó, que se pôs a dançar e a cantar em iídiche — com esses gestos, abre “a janela que dava para a sua infância”, mostrando aos familiares que era de um mundo perdido, de uma Varsóvia que já não existia.

Como seria expectável, a passagem de alguns familiares pelos campos de concentração nazis, e também um episódio de fuzilamento em massa em Kiev, funcionam no romance como referências identitárias. A narradora visita Auschwitz, mas pouco tempo depois percebe que a sua memória não conseguiu reter nada: “Tentei colar impressões posteriores sobre esta amnésia que me parecia uma vidraça fosca, mas nada ficou, tudo desapareceu como as folhas do ano passado e eu só via um dia dourado de Outono com arvoredo na moldura de um quadro.” Um ponto central de todo o romance acaba por ser o lugar de Babi Iar, uma grande ravina em Kiev (hoje um parque) onde durante o mês de Setembro de 1941 terão sido assassinadas cerca de 100 mil pessoas, entre as quais a bisavó da narradora, que talvez tivesse o nome de Esther, dúvida que acaba por dar o título ao romance.

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