Pensar a saúde em tempos eleitorais

Reformar não significa destruir o SNS, implica gastar melhor o dinheiro dos contribuintes.

Em tempo de eleições há muita retórica que se resume a uma repetição cíclica de promessas e compromissos em direção ao mundo ideal que todos ambicionamos.

No domínio da Saúde, não há dúvida que o nosso SNS representa um marco civilizacional, como acontece em dezenas de países da OCDE, desde a Grécia à Espanha, com passagem por França, Alemanha e Inglaterra, que lhe serviu de inspiração.

Se olharmos para o País de há quarenta anos e o contemplarmos hoje, a evolução foi enorme. Os níveis de bem-estar alcançados, se bem que relativos no contexto europeu, juntaram-nos às nações ditas ricas. Os principais indicadores de saúde mudaram radicalmente e colocaram-nos no meio da tabela dos países da OCDE. O Sistema de Saúde, em especial o SNS, teve um papel importante mas não exclusivo. A melhoria do nível cultural, a diminuição da iliteracia, a habitação, a rede de esgotos e abastecimento de água, o acesso a bens de consumo, a informação e o progresso em geral foram mais incisivos mas menos percetíveis que o SNS.

Como reflexo destas evidências aparecem os exageros políticos, desde a atribuição de paternidades, a termos os melhores técnicos, as melhores estruturas, o melhor sistema do mundo, o mais bem gerido, o mais justo e equitativo, o mais barato, entre outras epifanias, que induzem na opinião pública um sentimento de rejeição a qualquer mudança ou adaptação aos tempos que correm. Neste particular, todas as forças políticas são iguais, embora umas mais coerentes que outras.

Numa Europa desenvolvida, onde a todos os momentos surgem novos desafios - fluxos e migrações populacionais, envelhecimento, doenças crónicas e o acesso à inovação, diminuição do mercado de trabalho - ninguém pensa abandonar o Estado Social, mas todos os países estudam arduamente a forma de o manter viável, fazendo as reformas consentâneas com os tempos. É isso que urge discutir e implementar em Portugal. Há várias vias para atingir os mesmos fins. Parece-nos profundamente errado perverter o diálogo na base de fantasmas ou fantasias com que se tenta defender o SNS.

A primeira preocupação nos tempos que correm deve ser a de poder oferecer melhor cobertura, sem gastar o dinheiro que não existe.

O SNS, constitucionalmente, surge como um serviço que o Estado garante aos portugueses de modo a terem acesso universal e tendencialmente gratuito à saúde.

Teoricamente, para os que defendem uma sociedade em que o Estado deve ser detentor dos meios de produção é natural que defendam uma prestação totalmente pública, paga com dinheiro dos impostos e não faz sentido haver na prestação da saúde qualquer organização privada. Claro que, para além de Cuba, poucos exemplos restam da aplicabilidade desta concepção da saúde, segundo a qual não é aceitável qualquer liberdade de escolha ou mecanismos de concorrência, já que o Estado decide pelo cidadão.

A sustentabilidade desse modelo está ligada à concepção da sociedade igualitária em que o Estado define prioridades. Nada impede que os defensores desta tese semeiem estruturas por todo o lado, mobilizem médicos para zonas remotas, porque a sustentabilidade do Sistema de Saúde poderá resumir-se a distribuir o existente, não raras vezes socializar a pobreza e a escassez.

Para os demais, que defendem uma sociedade de modelo europeu, democrática, com mercado e concorrência, a prestação da saúde tem-se constituído sempre como um universo de excepção, com manutenção dos principais meios de produção na mão do Estado, estruturas de matriz pública, por vezes matizada com a constituição de empresas. Assim acontece com os hospitais, que em quase todas as localidades do país são os maiores empregadores locais. Neste registo, a liberdade de escolha e a concorrência entre as organizações serão, para alguns, ideias mais graves que os pecados mortais para os católicos. Recusam o lucro mas regozijam-se com prejuízo endémico, induzido por factores e interesses incompatíveis com uma gestão moderna.

Neste aspeto, por muito que se guerreiem os partidos do arco do poder, cantam glórias, juram manutenção do sistema, mas não revelam como, quando o PIB tem crescimento anémico e o peso da inovação, das doenças crónicas e da longevidade está a ser avassalador e crescente. Todos parecem esquecer que nada se faz sem recursos e que, quando não se reforma, tudo volta à fórmula inicial.

É pena que, com tanta atividade económica que exalta o mercado, se olhe o sector privado da saúde com a tolerância de quem precisa dele para complementar as insanáveis insuficiências do SNS.

Não há coragem para proporem reformas estruturantes que permitam manter ou melhorar coberturas e acessibilidades, sem ser através dos ineficientes sistemas de prestação pública, cada vez mais caros, como resultado de terem sido tomados por interesses políticos, económicos e corporativos. Também não há coragem para se insinuar uma intenção de reforma porque o outro lado político tradu-la para o eleitorado como uma destruição de direitos a que o SNS está ligado.

Para manter o direito à saúde e a viabilidade do acesso universal é preciso ter coragem de assumir reformas e é patriótico estabelecer consensos interpartidários. A saúde deve ser produzida por quem a fizer melhor e mais barato, competindo ao Estado garanti-la, regulá-la e auditá-la. Os tabus ideológicos não pagam a conta e é obrigação dos Governos gerir da melhor maneira os impostos que pagamos.

Apesar das dificuldades, o exemplo da ADSE - com uma gestão simples, hoje em contínua progressão e eficaz - subsiste com dotações muito menores porque a prestação privada que a fundamenta, apesar de defeitos a corrigir, responde de forma bem mais eficiente e satisfaz melhor as necessidades dos doentes.

Reformar não significa destruir o SNS, nem todo o sector produtivo do Estado, nem colocar em causa a continuidade de muitas unidades na esfera do Estado como verdadeiras empresas públicas.

Reformar implica gastar melhor o dinheiro dos contribuintes e tal só é possível pela liberdade de escolha e concorrência, como acontece na Europa. É altura de o Estado defender o que deve defender, mas deixar de tutelar a vontade dos doentes que até trata por utentes.

Presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada (APHP)

 

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