Falta-lhe um gene? Isso nem sempre é razão para alarme

É oficial: o mais completo e abrangente catálogo de sempre das variações genéticas presentes no ADN humano fica a partir de agora acessível à comunidade científica.

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As sequências genéticas de duas pessoas escolhidas ao acaso podem diferir em milhões de sítios Nuno Ferreira Santos

O consórcio que gere o Projecto 1000 Genomas, um esforço internacional dedicado à sequenciação na íntegra do ADN de uma multidão de pessoas oriundas de todos os cantos do mundo com vista a estudar a sua variabilidade, publicou esta quinta-feira, na revista Nature, o seu balanço final.

Na realidade, graças aos avanços dos últimos anos nas técnicas de sequenciação genética, não foram mil, mas 2504 os genomas sequenciados – em 26 populações de 18 países de África, da Europa, do Leste e Sul da Ásia, e das Américas.

“Temos agora um repositório público que descreve o alcance e a diversidade da variação genética humana no mundo”, disse o investigador português Gonçalo Abecasis, da Universidade do Michigan (EUA) e um dos principais protagonistas do projecto, em comunicado da sua universidade. “Sabemos agora quais são os genes que se alteram raramente e quais os que estão alterados em determinadas populações.”

Foi em 2008 que este empreendimento científico internacional foi lançado, com o objectivo de construir um catálogo, um “mapa”, das variações presentes no ADN humano do mundo inteiro, dentro de uma dada população bem como entre várias populações. Em 2011, o consórcio já publicara uma pequena primeira leva de resultados.

Porquê lançar este projecto? Porque não há dois genomas humanos iguais. Pelo contrário, as “letras” que compõem o ADN de duas pessoas quaisquer – que é essencialmente uma lista ordenada de três mil milhões de moléculas designadas por A, T, G, C –, podem diferir em milhões de sítios.

Algumas dessas diferenças fazem com que uma das pessoas seja saudável enquanto a outra desenvolve uma doença grave, donde o seu interesse em termos médicos. Mas a maior parte das vezes, sem serem causadoras de doença, são simplesmente a “marca” deixada nos nossos genes pelas andanças da nossa espécie (e em particular dos nossos antepassados) ao longo da sua história.

A forma mais simples de variação genética são mutações pontuais chamadas SNP, que hoje são utilizadas nos testes comerciais de ancestralidade propostos por diversas empresas. Porém, sabe-se que o genoma humano também contém uma boa dose de variabilidade estrutural: fragmentos de ADN apagados, duplicados, inseridos ou virados ao contrário.

O novo “mapa” constitui o mais detalhado catálogo de sempre dos diversos tipos de variações presentes no ADN humano e fornece “uma visão abrangente da variação genética nas populações humanas de cinco continentes”, explica a Nature, que publica dois artigos onde são apresentadas as principais conclusões a que chegou, ao fim de oito anos, a imensa equipa envolvida no projecto. “Imensa” é a palavra certa: basta ver que, num dos artigos, os nomes e as filiações dos autores enchem três páginas escritas em letra pequena.

Um desses resultados – talvez o mais inesperado –, é que o facto de faltarem genes num genoma poderá ser menos problemático do que se poderia pensar. “Quando analisámos os genomas das 2500 pessoas, ficámos surpreendidos ao constatar que mais de 200 genes estavam por vezes completamente ausentes”, diz Jan Korbel, que liderou o projecto no Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL), em Heidelberg (Alemanha).

Isto poderá ter implicações médicas, salienta Evan Eichler, co-autor da Universidade de Washington (EUA): “Quando um médico vê que falta um bocado de ADN no genoma de uma pessoa, há a tentação de associar essa falta a um diagnóstico. Agora, podemos dizer aos clínicos que há certos genes que não devem ser usados para tentar explicar doenças.”

Por outro lado, o trabalho revela, como era de esperar, que as variações estruturais do ADN são muitas vezes susceptíveis de ter consequências funcionais. “Agora já podemos indicar aos especialistas o que procurar quando estão a tentar perceber as causas genéticas de tal ou tal doença”, diz o co-autor Oliver Stegle, do EMBL.

O consórcio descobriu ainda que o genoma “típico” difere do chamado “genoma humano de referência” (a sequência de ADN oficialmente utilizada em todo o mundo como base de comparação nos estudos genéticos) em quatro a cinco milhões de locais da cadeia do ADN.

No total, foram catalogados 88 milhões de variantes, que indicam diferenças genéticas quer no seio de uma população, quer entre populações diferentes. Entre elas, 12 milhões são comuns a todos os continentes enquanto 24 milhões são específicas de uma área geográfica ou de uma população. A maioria das diferenças – 64 milhões –, são raras, surgindo apenas em 1% ou menos dos genomas analisados.

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