Santa Merkel já não é santa?

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1.Em menos de uma semana Santa Merkel quase perdeu a santidade. No domingo, o seu ministro do Interior anunciou a reposição provisória das fronteiras, oferecendo mais munições aos que gostariam de acabar com Schengen e esquecer as palavras da chanceler sobre os refugiados. Outros países vizinhos, incluindo a Holanda, aproveitaram para fazer o mesmo. O objectivo imediato da chanceler percebe-se. Não se trata de mudar de política, mas de desacelerar o fluxo das últimas semanas que esgotou boa parte do aparato logístico necessário. Mas a questão não é assim tão simples.

A reposição das fronteiras terá também servido à chanceler para enviar outras mensagens. Em primeiro lugar, dissuadir os refugiados que, da Hungria ao Afeganistão, empunham cartazes a louvar o seu nome e a sonhar com uma vida na Alemanha. Merkel precisava também de responder às crescentes pressões internas no seu próprio partido e, sobretudo, na CSU da Baviera para adoptar uma política mais restritiva. Citado pela Spiegel, o líder da CSU considera que a chanceler “cometeu um erro grave que nos manterá ocupados durante muito tempo”. “As críticas chegaram de todo o lado”, diz o Süddeutsche Zeitung. Finalmente, era preciso colocar toda a pressão possível sobre os seus parceiros europeus na véspera de uma reunião convocada para debater a proposta de Jean-Claude Juncker para um mecanismo de quotas fixas e automáticas.

Merkel teve o mérito de colocar o problema na sua total dimensão. As migrações, sejam quais foram os seus motivos, são um desafio de longo prazo que a Europa tem de encarar estrategicamente. E disse mais. Disse que a própria identidade alemã acabaria por mudar e que isso era uma coisa boa. Lembrou que a política dos “trabalhadores convidados” adoptada durante décadas não tinha funcionado da melhor forma. Os imigrantes eram aceites enquanto fosse preciso, sem direito à obtenção da nacionalidade, graças a uma lei que limitava a cidadania aos alemães de sangue. Foi revista durante os governos SPD-Verdes, abrindo as portas a uma dupla cidadania que continua a ser controversa. Hoje, são os próprios empresários alemães que precisam de gente de fora para trabalhar (há estudos que falam em 500 mil por ano) num país em que a taxa de natalidade é a mais baixa do mundo. É também face à demografia que as propostas de chanceler fazem sentido. Além disso, ela sabe o que é um Muro e tem uma especial atenção, dizem os analistas alemães, a qualquer manifestação que faça lembrar o terrível passado do seu país. Ontem, esteve com o seu homólogo austríaco para convencerem Donald Tusk a convocar um Conselho Europeu. Antes que o caos se instale na Europa central, que a violência cresça na proporção do que está em causa e que os europeus voltem a enterrar o sentimento de solidariedade que manifestaram em larga escala, a partir do dia em que uma simples foto fez abalar as consciências.

2. Merkel acreditou que tinha a força e os aliados suficientes para levar os ministros do Interior da União a aprovarem o plano Juncker. Não foi assim. Pelo contrário, foi uma triste demonstração da divisão e da total incapacidade da Europa perante desafios que não vão desaparecer. Sem nada para dizer, os ministros aprovaram “entusiasticamente” o envio de uma “invencível armada” para eliminar os traficantes, como se isso fosse possível. Enquanto houver gente que está disposta a arriscar tudo para chegar à Europa, o “negócio” continuará. Tal como o nacionalismo e a xenofobia que foram tomando conta dos países da Europa de Leste, os mesmos que, há vinte cinco anos, também queriam uma fenda no arame farpado que os separava da liberdade e da riqueza ocidentais. Há razões de cultura política. Ao contrário das democracias ocidentais, que sempre se habituaram a viver com a diferença, as sociedades de Leste são muito mais homogéneas. Ninguém quereria imigrar para lá no passado, nem isso seria permitido. Mas não são certamente os únicos. A Dinamarca corta as vias de acesso à Suécia, o segundo país mais desejado, sem prestar contas a ninguém, servindo-se apenas do seu “opt-out” neste domínio. E há ainda, entre os parceiros do Ocidente, uma crítica mais ou menos audível para a qual o correspondente do Guardian em Bruxelas, Ian Trayner, chama atenção: a forma unilateral como Berlim toma as suas decisões. Quando decidiu repor as fronteiras ou quando declarou morta a Convenção de Dublin sem se dar ao trabalho de falar com os seus vizinhos. Os próximos dias serão decisivos para ver se há ou não há a capacidade para uma resposta europeia. Hoje, a paisagem política alterou-se profundamente, com a presença cada vez mais forte dos partidos nacionalistas e xenófobos. Como também escreve o Guardian, “os europeus têm pena dos imigrantes mas também têm medo”. Ontem, o vice-chanceler Sigma Gabriel disse que a “Europa se cobriu de vergonha” ao não conseguir decidir sobre um plano que é da responsabilidade de todos. António Guterres, que foi a Bruxelas falar aos ministros europeus, lamentou profundamente a incapacidade de decidirem seja o que for. Há 10 dias, numa entrevista ao PÙBLICO, disse que se considerava optimista com a forma como as sociedades europeias estavam a reagir ao drama dos refugiados. Acreditava que acabariam por influenciar os respectivos governos. Ontem declarou-se “chocado”, e avisou para o caos que a situação pode gerar.

3.O que fará agora a chanceler? Lutará pelos princípios que enunciou ou render-se-á à pressão do seu partido? Tem o mérito de ter colocado a questão no seu devido lugar, tal como liderou a resposta europeia a Putin com mão firme. Mas não chega abrir as portas aos refugiados. É preciso ir às causas que os põem em fuga. O Estado Islâmico tem de ser combatido, como fazem americanos, franceses e britânicos, mesmo que com resultados muito modestos. E tem de haver uma forma de parar o regime de Damasco. Os desafios europeus são hoje outros, muito mais complexos. Não vão desaparecer tão depressa e a segurança tem um preço, que a Europa terá de pagar.

 Voltando a Schengen, há o risco de matar de vez um dos pilares da identidade europeia: a possibilidade de ir de Lisboa aos Bálticos sem ter de parar numa só fronteira. Se a Europa não se entender sobre uma política comum de asilo, se continuarem a prevalecer as respostas nacionais, então as fronteiras acabarão por voltar. Seria um golpe profundo. 

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