Há um português a contar ursos polares no Árctico

Svalbard e Terra de Francisco José são parte do habitat dos ursos polares. Tiago Marques esteve lá em 2004, a contá-los. Este ano o biólogo voltou ao Árctico para avaliar a espécie em risco.

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Um urso polar macho que se aproximou do navio Lance Tiago Marques
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Um urso polar macho Tiago Marques
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Glaciar de Kvitoya Tiago Marques
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Um urso polar macho Tiago Marques
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O navio da guarda costeira norueguesa, KV Svalbard, onde a equipa esteve Tiago Marques
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Tiago Marques com um urso polar atrás Karen Lone

Em pleno oceano, avista-se um urso polar em cima de um icebergue. É inesperado. O que está ali a fazer? As focas não se aproximam dos icebergues. O que comerá se não há focas? Para onde vai? Do que está à espera? Por que não se lança à água? Eles são exímios nadadores… Tiago Marques pensou em tudo isto enquanto tirava “500 fotografias” ao “raio do bicho”. Aparições como esta que marcaram o biólogo em Agosto de 2004, quando foi pela primeira vez contar ursos polares para os arquipélagos de Svalbard, na Noruega, e de Terra de Francisco José, na Rússia, numa expedição do Instituto Polar da Noruega (IPN).

“São bichos brutais”, recorda ao PÚBLICO o biólogo, que fez essa expedição no navio de investigação Lance, do IPN, e vai contando histórias desse Verão. “O lixo orgânico vai borda fora. Estávamos no gelo e eles têm um olfacto poderosíssimo. Veio um até ao pé do barco. Estávamos a três metros dele. Está-se cá em cima e aquilo mete respeito. É diferente de ver um no jardim zoológico. Pensei: ‘Se caio ali, sou um figo’. Eles não predam humanos, mas são competidores de topo. Um humano é uma ameaça.”

Durante um mês em 2004, a equipa liderada pelo especialista em ursos Jon Aars, do IPN, onde se incluía Tiago Marques, contou estes mamíferos a bordo de um helicóptero, nas ilhas daqueles dois arquipélagos. Ao todo, percorreram quase 21.000 quilómetros de helicóptero e encontraram 276 ursos. Através de fórmulas matemáticas, estimaram que existiam então, naquela região, entre 1900 e 3600 ursos polares, o equivalente a 7,6 e 14,4% da população de todo o Árctico, calculada em 25.000 ursos.

Aquela população nunca tinha sido contada. Agora, passados 11 anos, a equipa do IPN voltou àqueles territórios inóspitos. Tiago Marques, que trabalha na Universidade de St Andrews, na Escócia, foi de novo convidado para a aventura. Entre 31 de Julho e 1 de Setembro esteve a contar ursos polares em novas viagens de helicóptero, em que o nevoeiro foi um dos inimigos. “Não voámos dois terços do tempo”, relata um dia depois de ter regressado a Lisboa. “Precisávamos de cobrir uma área muito maior do que aquela que conseguimos.”

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Outro problema foi a impossibilidade de ir à Terra de Francisco José. “Não tivemos acesso ao território russo. Não há uma razão oficial. Enquanto estivemos na Noruega, um jornal de Svalbard obteve uma reacção da embaixada russa a dizer que o processo ainda estava a ser avaliado”, conta o biólogo. Mas por essa altura Jon Aars já tinha planeado a missão sem a visita ao arquipélago russo.

Estas condicionantes dificultaram o objectivo da missão: fazer uma contagem dos ursos polares nos dois arquipélagos e na parte da banquisa (a enorme região de gelos eternos no mar que não derrete no Pólo Norte) junto dos arquipélagos, tal como em 2004. Desta forma, os cientistas poderiam comparar a população actual deste mamífero com a população de 2004 e concluir se, naquela região, o número está estabilizado, a aumentar ou a diminuir.

A incerteza de um urso

O urso polar está na categoria “vulnerável” na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza, que avalia o grau de risco de extinção das espécies. Não é a pior das categorias, mas uma espécie “vulnerável” está em risco elevado de se extinguir na natureza. No caso deste mamífero, as alterações climáticas, a poluição e a caça são factores de pressão para um animal especialmente importante para os noruegueses.

“O urso é um animal muito carismático na cultura norueguesa e é uma espécie indicadora em relação às alterações climáticas. Há um interesse muito forte”, diz o cientista português de 40 anos, que começou por falar com o PÚBLICO antes da viagem ao Árctico.

O IPN tem como funções dar informações sobre a situação da fauna, da geologia e da hidrologia das zonas polares. “O objectivo é perceber o que está a acontecer com as populações de ursos polares”, refere Tiago Marques. “Não há nenhuma estimativa robusta global da população, o que se torna ainda mais difícil porque o seu território inclui zonas remotas de vários países.”

Os ursos polares (Ursus maritimus) vivem nas regiões árcticas do Alasca (Estados Unidos), do Canadá, da Rússia (incluindo a Terra de Francisco José), na Gronelândia (Dinamarca) e em Svalbard (Noruega). Em geral, preferem regiões com gelo todo o ano e junto do oceano, onde tenham acesso a focas, o seu prato favorito. Apesar de os cientistas terem estabelecido 19 subpopulações distintas naquele território, estas definições funcionam só para ajudar a gestão ecológica da espécie nos vários países e não reflectem o que são as populações naturais e a movimentação anual dos ursos, já que podem fazer viagens de centenas e centenas de quilómetros por mar.

“Não se sabe muito bem se os ursos polares se encontram todos lá em cima [no Pólo Norte], se há troca genética, se depois voltam cá para baixo”, diz Tiago Marques. “Com o degelo do Árctico, os sítios para fazer tocas estão a diminuir”, acrescenta. “Para fazerem tocas, precisam de determinadas zonas com terra e algum gelo. Muitas destas áreas, se houver aquecimento, vão desaparecer e não se percebe quais serão as áreas em que aquelas condições se poderiam formar também.” Além disso, o cientista antecipa uma diminuição de várias populações de focas. Estima-se que em 2050 a população de ursos polares esteja reduzida a um terço do número actual.

Nos últimos anos, Tiago Marques tem estudado principalmente o impacto do uso de sonares no mar para as baleias. Mas em 2004, estava a fazer o doutoramento em metodologia de amostragens de animais por distâncias, também na Universidade de St Andrews. Esta área é importante para qualquer trabalho de ecologia quando se quer saber o número de animais de uma espécie, já que é praticamente impossível contar todos os indivíduos. Por isso, os biólogos usam técnicas em que se conta um número limitado de indivíduos e, a partir de certos métodos, extrapolam o número total da população.

Para contar os ursos, os investigadores voaram num helicóptero. O aparelho percorria segmentos de linhas rectas definidos no território que o animal habita – os chamados “transectos”. Depois, no helicóptero, tinham de detectar ursos a olho nu. Quanto mais longe um urso estivesse do transecto por onde passava o helicóptero, mais difícil seria detectá-lo. É a partir desta incerteza na detecção de um urso que se usou a estatística para fazer uma estimativa da população total.

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“O que é necessário para fazer estimativas de abundância é perceber qual é a probabilidade de um urso estar na amostra. Se tiver contado dez ursos e a probabilidade de ver um urso é de 0,5 em 1, então é porque havia 20 ursos”, simplifica o biólogo, que acabou envolvido na expedição por mero acaso quando, em 2003, Jon Aars frequentou um curso de amostragem na Universidade de Saint Andrews, para se preparar para a contagem dos ursos.

Tiago Marques ajudava a dar estes workshops, juntamente com o seu orientador de doutoramento, Steve Buckland, que foi quem recebeu inicialmente a proposta para ir ao Árctico. “O Jon perguntou ao Steve: ‘Será que não podes ir connosco ao campo? Isto é uma coisa tão grande que dava jeito ter alguém a quem fazer perguntas.’ O Steve, que era um senhor já em pré-reforma, com uma certa idade, disse: ‘Não consigo, tenho a minha filha, a minha família.’ E perguntou-me: ‘Ó Tiago, não queres ir ao Árctico?’ E eu: ‘Sim, claro!’ E foi assim…”, recorda o biólogo. “Três metros ao lado estava outro amigo meu, o [investigador] Jon Bishop. Se estivéssemos em posições invertidas, aposto que a pergunta tinha sido para ele.”

Sem escala, nem espaço e tempo

A viagem ao Árctico “foi uma experiência absolutamente alucinante”, recorda o cientista sobre a missão em 2004. Tiago Marques descobriu paisagens impressionantes, onde é difícil compreender a escala do que se vê no chão a partir do helicóptero. “Não há ninguém, não há nada, não se ouve nada”, lembra. “O que é aquilo?”, referindo-se a uma cratera. “Foi um vulcão em tempos, os geólogos sabem que existiu, mas provavelmente mais ninguém. Provavelmente ninguém esteve naquela cratera”, especula. “Depois de ter estado ali, as coisas tornam-se mais pequeninas.”

Agora, é atravessado por sensações semelhantes. “Ainda estou completamente no ar. Durante muitos dias tive uma vida muito diferente e agora estou a assentar”, admite. “Foi muito engraçado voltar ao Árctico. É uma paisagem e ambiente diferentes de tudo. Perde-se a noção de escala, do espaço e do tempo.”

Svalbard, que fica a meio caminho entre a Noruega e o Pólo Norte, tem mais de uma dezena de ilhas, três das quais bastante grandes, que perfazem uma área equivalente a dois terços de Portugal. Já a Terra de Francisco José, onde a missão só esteve em 2004, fica a nordeste de Svalbard, tem cerca de 190 ilhas pequenas e uma área equivalente a três vezes o Algarve.

A equipa voltou a viajar no navio de investigação Lance durante parte de Agosto, noutra parte esteve num navio da guarda costeira norueguesa. Os helicópteros partiam sempre destes navios para observar os ursos polares, que no terreno saltam à vista, ao contrário do que Tiago Marques antecipava: “A terra é escura e eles são brancos, é como uma borbulha na cara de um adolescente. No gelo é surpreendentemente fácil. Na realidade, os ursos são amarelos e o gelo é branquinho.”

As viagens de helicóptero eram de quatro horas, por turnos, e os transectos variavam entre poucos quilómetros, nas zonas costeiras das ilhas, até longos percursos de 200 quilómetros pela banquisa. Cada vez que viam um urso polar, o helicóptero desviava-se do transecto definido e ia até ao lugar do urso, para registar com um GPS a sua posição.

“A nossa estimativa para os ursos polares [em 2004] era para uma área equivalente à da Europa Ocidental, em que 1% é terra”, explica o cientista. “Na altura, tínhamos a ideia de uma coordenação entre os países [onde há populações de ursos] para fazer a amostragem da população total num só ano”, diz Tiago Marques. Quando se soma o número total de ursos polares usando contagens das subpopulações de anos diferentes, corre-se o risco de contar o mesmo urso em locais diferentes, além de se incluírem animais que já morreram e de excluir outros que entretanto nasceram. “Mas coordenar isto seria muito difícil, não sei se alguma vez vai acontecer.”

Em 2004, os biólogos também anotaram uma breve descrição do estado aparente de cada urso polar, que podia estar esquelético ou parecer bem alimentado. Agora, foram mais longe e fizeram biópsias para analisar o genoma de cada animal. Para isso, usaram uma espingarda com um dardo que se enterra na pele do urso e se liberta instantaneamente do mamífero. Depois, o helicóptero aproximava-se do chão e os cientistas apanhavam o dispositivo com uma vara com uma ponta magnética.

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“Esta análise permite fazer uma classificação rigorosa dos sexos dos ursos e verificar se temos muitas fêmeas sem crias.”

Juntos na banquisa

Os ursos polares machos podem chegar a ter 600 quilos e em pé atingem os três metros, as fêmeas pesam cerca de metade. Para aguentar temperaturas que atingem os 45 graus negativos, estes animais têm duas camadas de pêlo e, se bem alimentados, uma importante camada de gordura. Mas o acesso à comida pode tornar-se mais difícil com o degelo. Alguns dos ursos que a equipa encontrou estavam magros, outros bem alimentados.

Outro problema é a bioacumulação de poluentes orgânicos. “Os ursos polares estão muito contaminados. Comem focas que comeram peixes, que provavelmente já comeram outros peixes. Já estamos num nivel muito elevado da cadeia trófica, e há uma bioacumulação forte.” Estas substâncias ficam na gordura e passam para as crias pelo leite. “Os ursos polares são os primeiros a dar um sinal de alarme em relação a problemas, quer de aquecimento global quer de contaminação. O facto de estarem a desaparecer quer dizer que algo não está bem.”

No mês passado, a equipa contou cerca de 140 ursos polares, um número, para já, provisório, que será trabalhado nos próximos meses por Tiago Marques. “Só daqui a seis meses é que teremos uma ideia específica se há mais ursos do que em 2004”, diz-nos. No entanto, como a equipa não pôde ir ao território russo, esta comparação só será para a região de Svalbard, o que empobrecerá esta avaliação. “Tínhamos concluído que cerca de um quarto da população dos ursos vivia na região da Noruega e três quartos na região da Rússia”, explica o biólogo. “Não me parece que seja muito fácil estabelecer comparações em relação à área total.”

Observou-se ainda o que poderá ser um fenómeno novo, que não sido tinha sido visto em 2004. Numa das contagens na banquisa, a equipa viu cerca de 25 ursos polares num trajecto de apenas 100 quilómetros. Tiago Marques especula sobre as causas de tantos ursos numa área tão pequena. Poderá haver uma acumulação de alimento naquelas zonas por causa das correntes marítimas, por exemplo. “A sensação é que, noutro ano qualquer, a área onde haveria um hotspot de ursos seria diferente. Esta zona em particular era a de gelo entre dois arquipélagos. O gelo está a recuar e eles vão-se congregando no sítio com gelo”, interpreta o biólogo.

Depois de estudarem este fenómeno, os biólogos poderão desenvolver hipóteses que poderão ser testadas nas próximas vezes que forem ao terreno. Desta forma, peça a peça, vai-se construindo o “puzzle” que revela a ecologia desta espécie e podem fazer-se previsões mais acertadas das consequências das alterações climáticas.

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Um dos receios dos ambientalistas é que o aquecimento global permita o aumento do turismo, dos transportes, mas também da extracção de petróleo e gás natural no Árctico. E corre-se o risco de haver uma profunda alteração do habitat dos ursos polares, criaturas muito adaptadas ao Árctico e que têm poucas crias durante a vida, características que as tornam especialmente vulneráveis às grandes mudanças que se antevêem para aquela região. Perante este cenário, o urso polar sozinho num icebergue, avistado por Tiago Marques em 2004, é uma metáfora da situação desta espécie: isolada, sem lugar para ir, à espera que o gelo derreta.

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