Surpresa em Veneza: Desde Allá, de Lorenzo Vigas, recebe o Leão de Ouro

Uma história de amor e dependência impregnada pela luta de classes, é a primeira longa-metragem do realizador.

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Luis Silva, um miúdo das ruas de Caracas, tem aqui a sua estreia cinematográfica
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Alfredo Castro e Luis Silva
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Fabrice Luchini em L'Hermine
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Valeria Golino em Per Amor Vostro - na verdade, por amor de Gaudino

O júri da 72ª edição do Festival de Veneza, que terminou sábado no Lido, atribuiu o Leão de Ouro a Desde Allà, do venezuelano Lorenzo Vigas.

Belíssimo Leão de Ouro, e tanto mais bonito quanto o gesto do júri, presidido por Alfonso Cuaròn, nem sequer era esperado. Desde Allà filma, de forma precisa mas emocionada o embate entre duas personagens, um cinquentão homossexual e um adolescente das ruas de Caracas, relação essa que vai atravessando fronteiras, é sexo, é dependência económica, é protecção paternal, é… frieza e sofreguidão impregnadas pela luta de classes.

São dois mundos opostos, são dois actores de vidas diferentes, um é uma estrela do teatro chileno, Alfredo Castro (o de Tony Manero), outro um rapaz das ruas de Caracas, Luis Silva. O encontro, feroz, amoroso, solitário, mete medo - eles são impressionantes. Se Castro é a "vedeta" cuja participação mudou imediatamente a escala do filme (em termos de produção), Luis Silva tem aqui uma estreia fortíssima. Prometem-lhe já mundos e fundos em termos de carreira profissional. E Vigas promete continuar uma trilogia sobre "a paternidade", de que esta longa, que se segue a uma curta, é o filme do meio.

A presença esplendorosa dos actores parece ter sido decisiva nos outros prémios do palmarés. É como se o júri - integrado por Emmanuel Carrère, Nuri Bilge Ceylan, Pawel Pawlikowski, Francesco Munzi, Hou Hsiao-hsien, Diane Kruger, Lynne Ramsay e Elizabeth Banks - tivesse sabido encontrar, através da energia dos intérpretes, a narrativa possível para consagrar um concurso que se manteve muito tempo em perda, só se reencontrando nos últimos dias.

O francês Fabrice Luchini, actor de teatro, histriónico furioso (proporcionou uma conferência de imprensa imparável…), interpreta um juiz que transforma a sala de audiência num teatro, em L’Hermine, de Christian Vincent – o filme recebeu o prémio de interpretação e prémio de argumento.  Uma curiosidade: Luchini era já o actor de Vincent no seu primeiro filme, La Discrète, apresentado há 25 anos em Veneza.

Valeria Golino, interpretando uma napolitana que luta consigo própria e contra o meio familiar, em busca da sua  transcendência, é o objecto do amor do realizador Giuseppe M. Gaudino em Per Amor Vostro. Esse amor, excessivo, desequilibrado, naive e surrealista (o filme é isso) pode levar à adesão sem reservas. É a continuação, aliás, da história de amor de Gaudino pelos furores vulcânicos de Nápoles.

Mesmo num filme de animação – técnica stop motion – como Anomalisa, de Charlie Kaufman e Duke Johnson (Grande Prémio do Júri) este reencontro com o existencialismo (Kaufman è a cabeça de Queres ser John Malkovich e de Inadaptado) dá-se sem manobras de diversão. E se é assim rarefeito também se deve à intimidade criada pelas vozes de Jennifer Jason Leigh, Tom Noonan, David Thewliss, que interpretam as personagems do filme. Inicialmente uma peça sonora que foi representada pelos actores em Los Angeles em 2005, Anomalisa amplifica o efeito de intimidade do palco.  

O palmarés da 72ª edição de Veneza fica, desde já, como uma das melhores coisas dessa edição. Ei-lo, completo:

Leão de Ouro - Desde Allà, de Lorenzo Vigas

Leão de Prata, Melhor Realização - Pablo Trapero, El Clan

Grande Prémio do Júri- Anomalisa, de Charlie Kaufman e Duke Johnson

Taça Volpi para a Melhor Interpretação Masculina - Fabrice Luchini, por L'Hermine, de Christian Vincent

Taça Volpi para a Melhor Interpretação Feminina- Valeria Golino, Per Amor Vostro, de Giuseppe M. Gaudino

Prémio Marcello Mastroianni para um actor ou actriz emergente - Abraham Attah, por Beasts of No Nation, de Cary Joji Fukunaga

Melhor Argumento - Christian Vincent, L'Hermine

Prémio Especial do Júri - Frenzy, de Emin Alper

Foi ainda atribuído o Leão do Futuro, Prémio Dino de Laurentiis para uma primeira-obra, por um júri presidido pelo cineasta Saverio Constanzo, a The Childhood of a Leader, de Brady Corbet (o actor de Martha Marcy May Marlene, de Sean Durkin).

Ainda fora do palmarés principal, o prémio Venice Classics para o melhor documentário de cinema, foi atribuído a The 1000 Eyes of Dr. Maddin, de Yves Montmayeur, que olha para o canadiano Guy Maddin como um dos últimos magos do cinema. O restauro de Os 120 Dias de Sodoma, de Pasolini, valeu o prémio Venice Classics para o melhor filme de ficçâo restaurado - um filme que nunca recebera um prémio nos seus 40 anos de vida, cuja estreia foi quase contemporânea da morte de Pasolini, e que em Novembro volta então às salas italianas.

Na secção Horizontes (júri presidido por Jonathan Demme), o prémio para a melhor interpretação foi para Dominique Leborne, por Tempête, de Samuel Collardey; o prémio especial deste juri foi para Boi Neon, de Gabriel Mascaro; o prémio da realização para Brady Corbet, The Childhood of a Leader - que partilhou o prémio com Scott Walker, o autor da música. E o melhor filme: Free In Deed, de Jake Mahafy

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