A Política, finalmente

Não se deseja uma campanha anódina, sem tensão nem contundência, mas também ninguém tem saudades das campanhas agressivas, velhacas e aldrabonas do passado recente. Fale-se, portanto, do que interessa. De Política. Com maiúscula.

Se algum mérito teve o debate desta semana entre Pedro Passos Coelho e António Costa foi o de mostrar que há um limite na campanha para o jogo dos fantasmas. Que os maniqueísmos, as mentiras dissimuladas, o engodo argumentativo ou a manipulação semântica têm um limite.

José Sócrates era já o passado da política portuguesa, mas depois desse dia ficou condenado a vegetar na memória. A Coligação pôde perceber que ir a jogo numa campanha implica assumir posições e não ficar apenas à espera das fraquezas do adversário. O PS sentiu que para “virar a página da austeridade” precisa de fazer contas e de travar o eterno vício da promessa fácil e da tabuada para principiantes. A Política, com letra grande, teve a sua oportunidade de regressar esta quarta-feira e é por isso que custa a perceber os que continuam a alimentar a ladainha de que “não esclareceu nada” nem “serviu para nada”.

Nesse confronto, Sócrates e as expiações do seu passado foram as principais vítimas. Os portugueses já sabem o que devem saber sobre o que fez e não fez. Já firmaram as suas suspeitas sobre a sua inocência ou presumível responsabilidade criminal. Sabem que, aconteça o que acontecer, o resultado do inquérito judicial a que está sujeito servirá apenas para reforçar ou apaziguar as tristes lembranças de uma década perdida. Já perceberam que, se ele se decidir a falar, o impacto das suas palavras apenas servirá para criar um ruído de fundo que tornará inaudíveis as propostas do PS. Foi por isso um chão que deu uvas. Enterrado o maior fantasma do passado político recente, está na hora de voltar à política. De voltar, enfim, ao que interessa aos portugueses.

No final do debate, Passos Coelho deixou no ar uma declaração que serve bem para recolocar a campanha nos seus eixos. Há duas alternativas claras para os portugueses escolherem – há até mais, porque é obrigatório considerar as propostas dos outros partidos. Nessas escolhas o que está em questão não é apenas a factualidade das propostas, mas também o invólucro ideológico que as envolve e o que se lê nas suas entrelinhas. Não venham com a conversa estafada de que são todos iguais.

António Lobo Xavier deixou no PÚBLICO uma formulação feliz do que separa os principais partidos e da “opção clara” que os eleitores poderão fazer: “Ou se entende que a gestão da recuperação de Portugal, na sequência da intervenção da troïka, foi apesar de tudo meritória e coloca o país numa linha de esperança; ou se entende que a terapêutica foi errada, produziu sacrifícios inaceitáveis e evitáveis, que não há risco de suavizar a consolidação da dívida e do orçamento.”

Esclarecidos os campos, era de esperar que cada um dos contendores os assumisse e se batesse por eles. Jerónimo de Sousa e Catarina Martins fazem-no com naturalidade e convicção. António Costa vai desbobinando o seu programa como um baluarte na defesa do Estado Social, embora seja parco e dominado por uma certa aura de messianismo quando chega a hora de dizer como o vai pagar.

Depois, sobra Passos Coelho que acreditava que podia ganhar as eleições alimentando o “horror” do fantasma de Sócrates e jogando na mesa meia dúzia de trocos que sobraram dos últimos quatro anos. No debate com Catarina Martins em que pareceu um aprendiz de político, Paulo Portas foi a primeira vítima desse estado de autoconvencimento. No dia seguinte Passos Coelho usou e abusou dessa convicção de superioridade no confronto com António Costa. O que eles nos quiseram dizer é que a política de apertos e de cortes foi apenas uma decorrência normal do desastre criado por José Sócrates e que, ganho esse desafio, o que há a fazer é apenas mais do mesmo. O seu risco é histórico: Winston Churchill ganhou a Segunda Guerra Mundial e perdeu logo a seguir as eleições. 

Se a Coligação está onde está, se parece poder ganhar as eleições após o mais severo programa de ajustamento do país em décadas é porque há um número significativo de portugueses que acredita que Passos e Portas fizeram o que tinha de ser feito. Esses eleitores receiam de facto o regresso ao passado, mas, como todos, olham para as eleições também com fundadas expectativas sobre o futuro. É aqui que a estratégia de fazer de morto soçobra. Passos e Portas desdobram-se a dizer que fizeram por culpa de Sócrates e da imposição da troika, quando todos sabem que, no fundo, ambos receberam a troika como uma ajuda suplementar para fazerem o que queriam fazer. Não assumindo essa realidade, caem no campo das justificações, quase das desculpas. Ora só pede desculpa quem, assumidamente, sabe que errou.

António Costa não ganhou o debate apenas por ter sabido explorar os custos do ajustamento na vida dos portugueses, mas principalmente por ter sido capaz de mostrar um primeiro-ministro engolido pelo passado. Foi essa fragilidade do seu opositor que o levou a ter condições para se assumir como um líder assertivo (por vezes no limiar da arrogância). A mensagem subliminar que mais ficou a ecoar depois dessa discussão nem sempre rica mas, no essencial, esclarecedora, é que de um lado temos um Governo atarantado a justificar as suas escolhas e do outro o PS que, sem se explicar e ainda mais sem fundamentar as suas opções para lá da invocação de um estado de fé, mostrou estar no combate político com ideias estudadas e assumidas.  

Lançados os dados, percebe-se que há ainda um jogo de meias-verdades que, tal como o fantasma de Sócrates, era importante apagar. Dizer que Passos quer continuar as políticas da troika é não reconhecer que, factualmente, Portugal já não depende de um resgate financeiro para poder funcionar. Que se salvou do abismo, que recuperou parte da sua soberania e que isso é uma grande notícia para todos – e para o próximo governo. Afirmar que ele permanecerá como o campeão da “austeridade” não por necessidade mas apenas por devoção ideológica é baralhar os dados do jogo e não aceitar que, na actual situação, o país não tem outro caminho senão o de continuar a viver com os seus recursos.

Da mesma forma, dizer que António Costa é a reencarnação de José Sócrates e que o seu programa é essencialmente despesista é não perceber que, apesar de todas as tergiversações, o PS não faz promessas delirantes e assume gastar ou redistribuir o que tiver para gastar e redistribuir. Mariana Mortágua, do Bloco, sintetizava bem essa contradição do PS ao dizer que “a única coisa que o PS pode oferecer é uma austeridade aos bocadinhos em vez da austeridade”. O PS não faz contas, mas a Coligação também não. Como já aprendemos, a economia é uma disciplina cheia de subterfúgios.

Neste cenário, há boas razões para acreditar que a campanha das fanfarras e das mistificações perca espaço nas próximas semanas. Pela frente, os eleitores têm duas propostas claras, e os partidos terão mais a ganhar se as assumirem pelo que são e pelo que valem. Travesti-las com ilusões ou com o prenúncio do regresso do apocalipse após quatro anos de redenção, funciona cada vez menos num país apesar de tudo mais moderno e mais culto. Não se deseja uma campanha anódina, sem tensão nem contundência, mas também ninguém tem saudades das campanhas agressivas, velhacas e aldrabonas do passado recente. Fale-se, portanto, do que interessa. De Política. Com maiúscula.  

Sugerir correcção
Ler 3 comentários