Corpo e Alma

Três novelas finais de Thomas Mann, três reflexões acerca do sentido da vida

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As três novelas reunidas neste volume — As Cabeças Trocadas, (1940), A Lei (1944) e A Mulher Traída (1954) — foram escritas numa fase tardia da vida de Thomas Mann, o alemão (naturalizado americano) oriundo de uma antiga família hanseática, intimamente ligado à cultura germânica, profundamente influenciado pelo humanismo de Goethe e pelo lirismo de Heine e Schiller, um homem do mundo e um dos expoentes máximos da cultura do século XX. A sua vasta obra é a prova de uma invulgar resistência intelectual e de uma busca incessante pelo significado da existência, aliada a uma exigente reflexão sobre a arte, o artista e o seu papel no mundo, o inferno da pulsão erótica e o eterno conflito entre a vida e a morte. Mann, um escritor completo e inquieto, lúcido e genial, não se eximiu de explorar as suas próprias ambiguidades e fraquezas, nem de questionar a nossa comum matriz clássica europeia. Tal como os seus contemporâneos, os austríacos Robert Musil e Hermann Broch, reflectiu, nos seus escritos, sobre a História, a sociedade e a política, num ambicioso questionamento filosófico que se enquadrou e foi desenvolvido pelos movimentos intelectuais associados ao modernismo, o qual rompeu com anteriores paradigmas, impossíveis de recriar enquanto se desenrolava o drama apocalíptico de duas guerras devastadoras, a ascensão meteórica e terrífica da Alemanha e o seu trágico desmantelamento.

Tendo em conta o remoque de Hegel de que o romance seria “o épico burguês moderno”, Mann, à semelhança de Joyce e Woolf, trabalhou incessantemente este género literário — desde o mais tradicional Os Buddenbrook (1901) até ao decididamente modernista Doutor Fausto (1947) — explorando, “até ao osso” a complexidade do universo e das relações humanas. Mas foi nos contos e nas novelas que condensou a famosa ambiguidade que o fez procurar, angustiada ou/e ironicamente, a resolução do conflito (insanável) entre a intimidade emocional e o distanciamento intelectual.

A Mulher Traída

, considerada a sua última obra — o romance 

As Confissões de Felix Krull

 permaneceu inacabado —, conta a história de Rosalie, uma viúva ainda desejável que não se conforma, aos 50 anos, com as consequências do processo de envelhecimento, nomeadamente a menopausa. Tem dois filhos, Eduard, com 18 anos, e Anna, que, aos 29, está a caminho de se tornar uma solteirona, depois de um breve desgosto amoroso. Anna é uma artista 

avant-garde

 e uma racionalista, tem um pé boto — defeito que lhe confere o estatuto de “diferente” — e mantém com a mãe um diálogo constante, durante o qual acentua as suas críticas em relação ao sentimentalismo de Rosalie quando esta se apaixona por um jovem americano (um ser exótico na Düsseldorf de 1925), o que provoca nela um torvelinho erótico. Ken Keaton, professor de Inglês do filho, é desastrado, imaturo, encantador — adora a Europa por tudo ser tão antigo — e Rosalie, que “ama a Natureza” e tudo o que esta comporta de vital e exuberante, sente-se rejuvenescer junto dele, principalmente quando lhe acontece o “milagre” de sangrar abundantemente. Convencida de que lhe voltaram as regras, ilude-se com a ideia de ser uma mulher fértil, isto é, jovem. Mas o sangue é apenas o sinal de um cancro fulminante que a mata, pouco depois de, finalmente, ter beijado Keaton, numa visita a um castelo onde todos os sinais da desgraça se revelam: os cisnes negros agressivos, a cave bafienta onde se escondem, etc. 

Este conto é, obviamente, uma paródia brutal à mítica novela de 1912 Morte em Veneza, e Rosalie representa o contraponto feminino de Auschenbach. No entanto, a crueldade com que Mann trata Rosalie nada tem a ver com a exaltação da beleza tão intensamente vivida entre Gustav e Tadzio, isto é, entre um homem muito mais velho e um adolescente, claramente decalcada do Banquete e do Fedro, de Platão e intimamente ligada à visão nietzschiana. A misoginia de Mann está bem expressa nas figuras estereotipadas das duas mulheres, a mais velha, voluptuosa, arrebatada, emotiva, “ridícula”, e a filha, defeituosa, racional, equilibrada, inteligente e artista. 

Na segunda novela, A Lei, Mann recupera as narrativas da Bíblia que tinha já explorado, longamente, no romance em quatro partes José e os Seus Irmãos, uma obra que escreveu entre 1926 e 1943 e que relata a história do mundo desde o Génesis. É importante ressalvar o fascínio do autor pelo Oriente Antigo e pelas origens do Judaísmo, com uma referência particular à influência da cultura babilónica. Mann tinha lido Das Alte Testament im Lichte des Alten Orients, publicado em 1904 por Alfred Jeremias, o especialista alemão que escreveu sobre as culturas judaicas e as suas raízes orientais, e foi este mesmo interesse que o levou a recuperar uma lenda antiga indiana que ele recria em As Cabeças Trocadas, a história de dois amigos inseparáveis, o intelectual e meditativo Shridaman, e o sanguíneo e muito corpóreo Nanda, que são, evidentemente, a encarnação do espírito dionísiaco e a do espírito apolíneo, enredados num perpétuo conflito, tal como Nietzsche enunciou em A Origem da Tragédia. Ao apaixonarem-se pela mesma mulher — Shridaman casa com Sita —, tudo se complica. Num momento deveras sangrento em que ambos se suicidam cortando as respectivas cabeças, a desgraça é total; graças à terrível deusa Kali, Sita tem porém a oportunidade de voltar a “colar” as cabeças. Mas, na compreensível atrapalhação do momento, a sedutora troca-as e resolve assim, “inconscientemente” e em proveito próprio, o eterno conflito entre o corpo e o intelecto.

Em A Lei, Mann foca a sua atenção no Período Amarna, recriando, com pormenores sarcásticos, a história de Moisés contida no Êxodo: tal como na Bíblia judaica, o profeta é aqui meio egípcio, de sangue real, mas comporta-se como um político dos nossos dias, enredado nas malhas da propaganda, isto é, em muitas promessas de difíceis resultados. Para além disso, é um orador pouco inspirado, desajeitado e eternamente em conflito com Javé, que lhe impõe, como qualquer Deus monoteísta que se preze — fanático, cruel e arbitrário —, condições de obediência terríveis e pouco lógicas. Moisés vê-se em enormes dificuldades para obrigar o povo eleito a sair do Egipto e a segui-lo, mata-se a trabalhar nos truques para o convencer — as pragas, o separar das águas, o maná — e nem pode retirar-se tranquilamente para a montanha, para escrever as tábuas da Lei, uma vez que, mal vira costas, a sua gente entrega-se imediatamente a uma orgia de desobediência e vingança, com muitos queixumes e revoltas por terem sido arrastados para tão temerária aventura.

Thomas Mann, que ganhou o Prémio Nobel em 1929, abandonou a pátria ao dar-se conta do avanço nazi e da falência de um país que renegava a sua própria herança cultural. Foi um dos poucos intelectuais alemães que nunca se enganaram em relação a Hitller.

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