Não é alemão ser apenas alemão

A frase que serve de título a este texto é do historiador alemão Friedrich Meinecke (1862-1954). Ela deve muito à ideia de Fichte, apropriada pelos românticos (e sujeita depois a terríveis desenvolvimentos), do povo alemão como povo da humanidade (e que fez do nazismo uma forma de humanismo). Na sua ambiguidade, ela oferece-se no entanto a uma interpretação mais literal: o melhor e o mais verdadeiro sentimento nacional alemão compreende em si a ideia cosmopolítica de uma humanidade supranacional. É justo evocar esta frase no momento em que assistimos a uma grande operação de acolhimento de refugiados que mobilizou a sociedade civil em larga escala e fez das cidades alemãs versões contemporâneas das bíblicas cidades-refúgio. O facto contradiz os clichés de uma xenofobia alemã, da rigidez das suas regras sociais, do seu egoísmo, das “verdades” largamente difundidas, entre as quais a de que “a Alemanha não é um país de imigração”.

As coisas são muito mais complexas e, como podemos ver, há muito mais mundo para além dos clichés. Podemos manifestar algum receio em relação ao alcance e à duração deste empenhamento e desta comoção colectivos quando um dos mecanismos que os induz — o factor mediático — se retirar. Mas só por cinismo e profundo desconhecimento se pode ignorar uma verdade que o poeta e ensaísta Hans Magnus Enzensberger, num livro de 1992 traduzido em português com o título A Grande Migração (Relógio D’Água), dizia desta maneira: “Em mais nenhum sítio a retórica universalista está tão cotada como na Alemanha. A defesa dos imigrantes ganha poses moralizantes de uma suficiência inigualável. Slogans do género ‘Estrangeiros, não nos deixem sós com os Alemães!’ ou também ‘A Alemanha nunca mais!’ exprimem uma inversão dos pólos que chega a ser farisaica. É o negativo do cliché racista. Os imigrantes são idealizados segundo um esquema que lembra o filo-semitismo.” Toda esta questão suscita a referência a um apelo do filósofo Peter Sloterdijk à nação alemã, em 1990, o ano da reunificação, publicado em livro com o título Versprechen auf Deutsche (promessas alemãs). Trata-se de um panfleto, quase um manual para uso interno (por isso, quase não teve recepção fora da Alemanha). Sloterdijk apelava à vocação universal da Alemanha, introduzindo um tema que pode parecer estranho: a gemelaridade judaico-alemã, a misteriosa vocação comum que combina a ligação à identidade territorial (a famigerada Heimat) com a propensão para as visões e os projectos de carácter universal, implicando um sentido de responsabilidade pela humanidade inteira, o que justifica a célebre frase de Meinecke. Sloterdijk quis mostrar que a mitologia germânica do sangue e do solo é responsável por um desconhecimento da vocação alemã para o universal. O lado provocatório do apelo de Sloterdijk reside no facto de ele desmontar todo o aparato retórico do velho pangermanismo, reivindicando para a Alemanha um papel universal, afim da universalidade judaica. A ideia de uma pátria planetária deveria, nos termos de Sloterdijk, funcionar como leitmotiv da nova Alemanha unificada. Ir para além da nação, emancipar-se das suas raízes e entrar no novo paradigma planetário, significaria então assumir uma universalidade que seria ao mesmo tempo uma missão crítica em relação às desastrosas missões universais. Neste sentido, Sloterdijk pode definir os refugiados como os verdadeiros espíritos livres: eles ensinam a via que leva à liberdade, para além da nação.

Foto
Reuters

Sugerir correcção
Comentar