Devíamos ter-lhe pegado ao colo

A imagem que é impossível olhar é o símbolo último da culpa de cada um de nós.

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1. As imagens são mais fortes do que as estatísticas, diz o Guardian. A imagem que é impossível olhar é o símbolo último da culpa de cada um de nós. Devíamos ter--lhe pegado ao colo. Nunca nos perdoaremos. A nossa esperança colectiva é que haverá um antes e um depois. O antes já conhecemos: a distracção e a desunião europeia perante o contínuo agravamento da crise dos refugiados, somado em naufrágios que transformaram o Mediterrâneo num cemitério. Agora a rota dos Balcãs. Mas não vimos os corpos de 71 refugiados deixados morrer dentro de uma camioneta na Áustria. Ou então vimos as lágrimas de felicidade dos que conseguiam chegar ao destino.

Houve momentos em que a nossa consciência foi violentamente abalada pela própria grandeza dos números. A Comissão propôs há três meses a repartição de cerca de 40 mil refugiados pelos 28 Estados-membros. A proposta foi rechaçada, incluindo pela França. Vários governos insistiram lamentavelmente numa “legalidade” que já deixou de ter qualquer significado. Na Convenção de Dublin, os refugiados tinham de pedir asilo no país de chegada. A guerra na Síria dura há quatro anos. Gerou 4 milhões de refugiados e mais outros tantos deslocados internamente. Vivem no Líbano, na Jordânia, com o apoio do ACNUR, ou na Turquia, que trata o assunto pelos seus próprios meios. Ninguém ligou devidamente ao factor Estado Islâmico (sobretudo desde que deixou de transmitir em directo as decapitações de cidadãos ocidentais). A Líbia caminhava a passos largos para um Estado falhado, abrindo as portas a toda a espécie de organizações criminosas. Foi precisa essa foto de uma pequena vida que não conseguimos salvar. Ela tirou o chão de baixo dos pés de alguns líderes europeus. Deixou de ser possível usar determinadas palavras, muitas delas pedidas emprestadas às agendas dos partidos xenófobos.

David Cameron, como escreve a imprensa britânica, teve de mudar de discurso, sob pena de ser criticado até pelo Sun. “A mudança de 180 graus nos tablóides britânicos foi extraordinária”, escreve o Guardian. Apelam agora a um “imperativo moral”. Em Lisboa, onde passou duas horas, o primeiro-ministro britânico anunciou que o seu país receberia mais “alguns milhares” (na verdade poucos, cerca de 4000) de refugiados sírios, mas fora do sistema de repartição da União Europeia que a Comissão volta a pôr em cima da mesa, desta vez com um número mais realista: 160 mil. António Guterres pede 200 mil. François Hollande vergou-se finalmente à pressão da chanceler, juntando-se à Alemanha e à Itália, para defender uma repartição mais equilibrada.

O Monde escrevia que, apesar de tudo, a reacção francesa ainda é bastante tímida. A França, às vezes, parece já não acreditar em nada. Nicolas Sarkozy ainda não aceitou a repartição, considerando-a como um “apelo” a que venham mais refugiados. Ainda não desistiu da sua “política de firmeza”, que lhe pode render votos. A esquerda digladia-se entre as suas facções rivais, com pouco tempo para as tragédias humanas. O problema é que este é um desafio de longo prazo para a Europa pela simples razão de que o mundo passou a ser assim, que exige uma visão estratégica, mas também soluções humanitárias absolutamente urgentes. Alguma coisa mudará com a fotografia para que não conseguimos olhar? Terá de mudar.

2. Há um padrão no comportamento da Europa desde a queda do Muro perante dramas de dimensão igualmente trágica. Quando, em 1991, a desagregação da Jugoslávia se transformou numa guerra em que a “limpeza étnica” dos muçulmanos da Bósnia fez lembrar o terrível passado europeu, a Europa achou que resolvia o problema sem precisar de ninguém. Não foi assim. Milhares de mortos depois, foram precisas as imagens de Srebrenica para que os governos ocidentais agissem, desde que a América tomasse a liderança. A pressão das opiniões públicas foi decisiva. As filas de refugiados fugindo pelas montanhas à agressão da Sérvia no Kosovo levaram de novo a Europa e os EUA a intervir. A ONU tinha aprovado uma resolução sobre “a responsabilidade de proteger”. Tony Blair desafiava os europeus com a sua teoria da intervenção humanitária. Kofi Annan valorizava a soberania do indivíduo contra a soberania dos Estados. O mundo ainda era outro, com a promessa de prosperidade e de paz que a implosão da União Soviética permitiria. A NATO ficou no terreno para garantir que a guerra não regressaria.

Hoje, os Balcãs Ocidentais fazem o seu caminho para a Europa. Na crise ucraniana foi um avião de passageiros que partia de Amesterdão com centenas de holandeses a bordo, abatido por um míssil de cuja proveniência ninguém duvidou, para que a Europa (Berlim, em primeiro lugar) reagisse em conformidade. Agora, alguma coisa vai ter também de mudar. “Se a Europa falhar com os refugiados, se o seu apego aos direitos fundamentais for quebrado, então não será a Europa que desejamos.” A frase da chanceler resume o essencial. Já convenceu François Hollande a juntar-se a ela, com algumas nuances na carta conjunta que escreveram aos seus pares para tornar a sua reviravolta mas tolerável. Já não se fala em “quotas” de “imigrantes”, mas de “repartição” de “refugiados”.

Angela Merkel arrisca algum capital político. Já houve 200 ataques na Alemanha aos campos de refugiados, que ela enfrentou com coragem. Aconteceram quase todos nos Länder de Leste, provando que a herança cultural do comunismo é mais profunda do que se poderia pensar. Os húngaros, hoje liderados por um político autoritário e nacionalista, esqueceram-se das fronteiras que abriram para que os alemães de Leste pudessem chegar à Áustria e à Alemanha Ocidental. Hoje Victor Órban, que já violou um número razoável de regras europeias perante a quase indiferença de Bruxelas, ressuscita o Grupo de Visegrado (com a Polónia, Republica Checa e Eslováquia) para rejeitar qualquer repartição. O argumento dos cristãos versus muçulmanos regressa em força. Os países de Leste já não têm Vaclav Havel ou Geremek como consciência moral.

3. A União já foi uma ONG gigantesca, como dizia Jacques Delors, que justificava a sua acção externa com o facto de ser o maior dador internacional de ajuda ao desenvolvimento e humanitária. Levou muito tempo e muitas crises a perceber que tinha de ser outra coisa. Ainda não sabe qual. Durão Barroso, no auge de uma estranha euforia, chegou a chamar-lhe “potência emergente”. Toda essa retórica pretensamente optimista se esvaziou quando o mundo entrou em desordem e decidiu entrar-lhe pela porta dentro. A velha ladainha sobre a ajuda aos países de origem dos imigrantes já significa pouco e sobretudo não consegue resolver qualquer problema num período de tempo razoável. Na África continua a haver guerras e fome e miséria e falta de esperança.

As Primaveras Árabes, o seu fracasso e a emergência desta nova e perigosa estirpe de terrorismo que é o Estado Islâmico são hoje a causa fundamental da vaga de refugiados que procuram desesperadamente na Europa um lugar onde possam encontrar alguma dignidade. As potências europeias e os EUA decidiram que era preciso derrubar Khadafi, um monstro que lhes garantia a contenção dos imigrantes, mas esqueceram-se da fase seguinte e vieram-se embora. A saída da NATO e dos EUA (em parte) do Iraque e do Afeganistão continua a criar vagas de refugiados. Não vale a pena dizer que, para além do lado humanitário, a Europa não pode receber toda a miséria do mundo (o que é verdade) e tem de levar em atenção os medos das suas populações. O problema existe, vai permanecer, o mundo passou a ser muito diferente, a desordem mundial veio para ficar. A solução não será ceder à agenda xenófoba e antieuropeia dos movimentos que hoje definem a paisagem política de muitos Estados-membros, porque essa cedência significará inexoravelmente o fim da própria Europa.

Há uma outra fotografia que não me canso de ver. É de uma menina com uma cascata de cabelo escuro e uma flor azul na cabeça, sentada com uma amiga na trave do caminho-de-ferro. Parece uma das minhas netas. Há um elo indestrutível que se chama humanidade. A Europa tem de resgatá-la. 

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