Homem que expele vírus da poliomielite há 28 anos alerta para uma doença por erradicar

A iniciativa para erradicar a poliomielite no mundo arrancou em 1988. Mas este vírus resiste em locais improváveis e reemerge quando tem oportunidade, como acaba de acontecer na Ucrânia.

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Vacina oral contra a poliomielite dada a uma criança no Afeganistão Shah Marai

As vacinas contra a poliomielite impediram que milhões de crianças no mundo apanhassem este vírus, que provoca a paralisia e deixou muita gente impossibilitada de andar durante o século XX. Em 1988 foi lançada uma campanha mundial para a sua erradicação. Hoje, a doença é endémica apenas no Afeganistão, no Paquistão e na Nigéria e o seu fim está no horizonte. Mas os mecanismos de sobrevivência deste vírus continuam a surpreender os cientistas. Um novo estudo que documenta o caso de um homem no Reino Unido, que expele o vírus há 28 anos, alerta para os refúgios deste vírus, que poderão vir a estar na origem de futuros surtos se o plano final da erradicação da poliomielite não for bem conduzido, lê-se num artigo publicado na revista científica PLOS Pathogens.

O receio dos cientistas não é infundado. Com o surgimento de novos conflitos na Europa, no Médio Oriente e em África, a vacinação ficou comprometida nalguns países. Esta semana, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou um novo surto de poliomielite na Ucrânia, um país que nos dois últimos anos tem estado em convulsão. Uma criança de dez meses e outra de quatro anos apresentaram os primeiros sintomas de paralisia depois de terem sido infectadas com o vírus.

A Europa tinha sido declarada pela OMS como livre de poliomielite em 2002. O último surto no continente europeu foi em 2010, na Rússia, devido à importação do vírus do Tajiquistão. A reviravolta que ocorreu agora na Ucrânia não surpreende. Em 2014, metade das crianças daquele país que deveriam ter sido vacinadas não o foram. E o vírus aproveita qualquer oportunidade para reemergir.

“Precisamos de imunizar a população com a vacina”, diz ao PÚBLICO Javier Martin, o coordenador do novo estudo na PLOS Pathogens e director do Laboratório Global Especializado na Poliomielite da OMS, que fica no Instituto Nacional para as Normas e Controlos Biológicos, em Hertfordshire, no Reino Unido. Este laboratório supervisiona a vigilância à poliomielite no Reino Unido, na Irlanda e em Chipre, além de dar apoio à rede mundial de 140 laboratórios da OMS contra a poliomielite. Para o investigador, a origem dos novos casos é óbvia: “A percentagem da população vacinada na Ucrânia tem diminuído significativamente nos últimos anos e essa é a razão para este surto.”

Paradoxo sanitário

A poliomielite é uma doença antiga. Uma estela de pedra egípcia datada entre os séculos XVI e XIV antes de Cristo tem um desenho de um homem com um cajado e uma perna atrofiada, e pode ser interpretada como a representação de uma pessoa que teve poliomielite. As fotografias de crianças e adultos que tiveram a doença e ficaram com uma perna atrofiada são perturbadoramente semelhantes àquela ilustração milenar.

O vírus da poliomielite infecta normalmente crianças com menos de cinco anos e pode destruir neurónios responsáveis pela activação dos músculos, deixando as pessoas paralisadas de uma perna ou de mais membros. A doença foi descrita em 1789, mas só no século XX é que os surtos de poliomielite assustaram os Estados Unidos e a Europa.

Por trás da erupção de tantos casos esteve, paradoxalmente, um aumento da higiene. Os sistemas de esgotos que foram sendo construídos nas cidades fizeram com que houvesse muito menos contaminações devido à matéria fecal, um passo muito positivo contra várias doenças. No entanto, este novo sistema adiou o contacto de bebés com o vírus da poliomielite.

Até aos seis meses, os bebés ainda tinham anticorpos das mães contra a poliomielite – isto só no caso de as mães, elas próprias, terem estado em contacto com o vírus – e se apanhassem o vírus, além de terem meios para combater a doença, os bebés ganhavam imunidade. Por isso, a poliomielite provocava sintomas leves e não tinha, em geral, sequelas. Depois dos sistemas de esgotos serem construídos, as crianças só começaram a estar em contacto com o vírus mais tarde, já sem a protecção dos anticorpos da mãe, e o impacto da doença tornou-se maior.

As células do tracto digestivo são o alvo principal do vírus da poliomielite, onde se multiplica. O vírus é libertado nas fezes, podendo contaminar cursos de água e alimentos. A transmissão também pode ocorrer pela boca. Apesar de o vírus ser muito infeccioso, 90% das pessoas infectadas não apresentam sintomas e apenas 0,5% ficam irreversivelmente paralíticas. Nestes casos, isto acontece porque o vírus passou para o sangue e depois para o sistema nervoso, onde mata as células nervosas. Nalguns doentes, os nervos que sustentam o movimento dos pulmões ficam danificados, e as pessoas morrem sufocadas.

Há três tipos de vírus da poliomielite, e não há qualquer medicamento contra eles. Mas em 1955, o médico e virologista norte-americano Jonas Salk desenvolveu a primeira vacina contra esta doença. A vacina é intravenosa e contém os três tipos de vírus mortos, criando imunidade contra os três. Seis anos depois, o médico norte-americano Albert Sabin desenvolveu uma vacina oral, usando os três tipos de vírus enfraquecidos (ou atenuados).

Estas descobertas mudaram por completo o combate à doença. Antes das vacinas, havia 35.000 casos anuais de poliomielite só nos Estados Unidos, mas em 1965 já só existiam 65 casos naquele país. Em Portugal, a vacinação contra a poliomielite iniciou-se em 1965 e o último caso documentado da doença verificou-se em 1986.

Em 1988 foi lançada a Iniciativa Global de Erradicação da Poliomielite (IGEP), liderada pela OMS, a Rotary International, os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos e a Unicef. A erradicação mundial dos vírus da varíola em 1979, através da vacinação, já tinha provado que o objectivo da IGEP era possível.

O ambicioso plano da iniciativa era ter o vírus da poliomielite eliminado no ano 2000. Apesar de a missão não estar concluída, a redução da incidência da doença é notável: o número de casos mundiais baixou de 350.000, em 1988, para 359, em 2014. Ao todo, 2500 milhões de crianças foram vacinadas, num investimento superior a 8000 milhões de euros.

Na Nigéria, há um ano que não são notificados casos novos de poliomielite com origem em vírus em que não provêm da vacina e que já existiam no meio ambiente. Apenas no Afeganistão e no Paquistão continua a haver transmissão do vírus. Mas as subtilezas do mundo dos vírus dificultam esta tarefa, como mostram tanto o artigo da PLOS Pathogens como os dois casos na Ucrânia.

Infecção crónica

O caso que agora foi estudado pela equipa de Javier Martin nunca antes tinha sido visto. Entre Março de 1995 e Março de 2015, nas análises de amostras de fezes de um homem britânico, surgia sempre o vírus do tipo 2 da poliomielite. O indivíduo tem uma infecção crónica no tubo digestivo devido a uma doença do sistema imunitário chamada imunodeficiência variável comum.

Por alguma razão, a produção de anticorpos deste homem é baixa, o que dificulta o combate aos organismos patogénicos. “Este doente é incapaz de produzir um nível suficiente de anticorpos para o vírus ser limpo do tubo digestivo ”, explica-nos Javier Martin.

O sujeito tinha sido vacinado aos cinco, sete, 12 meses e aos sete anos de idade com a vacina oral – as vacinas da poliomielite necessitam de vários reforços para se obter a imunidade desejada. Anos depois descobriu-se que tinha a imunodeficiência e que o vírus da vacina sobreviveu no tubo digestivo.

Este é o principal problema desta vacina oral. Apesar de o seu vírus estar enfraquecido, pode deparar-se com um sistema imunitário mais fraco e provocar uma infecção. Uma em cada 2,7 milhões de pessoas que tomam a vacina oral acaba por ficar doente e até ter paralisia. Durante décadas, a vacina oral foi usada por ter vantagens que superavam esta desvantagem: é mais barata do que a vacina com o vírus morto, que é administrada por via intravenosa; confere imunidade tanto a nível do sangue como no tubo digestivo (a vacina com vírus mortos não provoca grande imunidade a nível dos intestinos e os vírus selvagens podem replicar-se nessa zona e manter a cadeia de transmissão); e é muito mais fácil de aplicar do que a vacina intravenosa.

Esta desvantagem da vacina oral com o vírus vivo tomou agora proporções mais graves na Ucrânia. O vírus que causou a doença às duas crianças é do tipo 1 e provém do vírus atenuado da vacina. “Quando a cobertura da vacina é baixa, há muitas crianças não-imunizadas que estão susceptíveis à infecção, por isso os vírus excretados [nas fezes] por crianças vacinadas infectam estas crianças susceptíveis e algumas vezes causam paralisia”, justifica Javier Martin. “Basta um pequeno número de mutações para o vírus perder a atenuação [que tinha quando foi administrado na vacina].”

O indivíduo do novo estudo não ficou com paralisia nem nunca apresentou sintomas de poliomielite. Mas continuou a produzir vírus derivados do vírus da vacina durante décadas. Entre 1962 e 2014, registaram-se no mundo 73 casos de pessoas com imunodeficiência que também expeliram o vírus da poliomielite adquirido após terem sido vacinadas. Mas a duração da infecção nestas pessoas foi muito menor, apenas em sete delas durou mais de cinco anos.

A equipa de investigadores analisou agora cerca de 190 amostras fecais daquele homem, obtidas nos últimos 20 anos, para quantificar a quantidade de vírus excretado, perceber a evolução do vírus no organismo do homem, avaliar se tinha capacidade de infectar e causar paralisia em ratinhos transgénicos e testar se os anticorpos humanos em resposta às vacinas administradas às pessoas reagiam e neutralizavam o vírus.

Através da genética, os investigadores perceberam que o vírus expelido já estava a evoluir há 28 anos no paciente a partir do vírus original. “O caso descrito aqui representa, de longe, o mais prolongado período de excreção [do vírus da poliomielite], e é o único indivíduo identificado actualmente a excretar um vírus derivado da vacina que é altamente evoluído”, lê-se no resumo do artigo.

O vírus é libertado em grandes quantidades e é capaz de infectar e causar paralisia em ratinhos. “Para crescer melhor no tubo digestivo, adquiriu algumas mutações, o que quer dizer que perdeu as propriedades atenuadas e aumentou a virulência”, explica Javier Martin.  

Felizmente, os vírus do paciente britânico foram rapidamente neutralizados quando expostos a soro de pessoas que tinham anticorpos contra a poliomielite produzidos graças à vacina oral com os vírus vivos. No entanto, no caso de soros com anticorpos produzidos a partir da vacina intravenosa, que contém vírus mortos, nem sempre a resposta foi tão eficaz.

Esta situação pode ser grave. Apesar de não serem conhecidos outros casos como este, há indicações de outras pessoas a expelirem actualmente o vírus. “Já foram encontrados vírus [nos esgotos] em Israel, na Estónia, na Finlândia e na Eslováquia. Achamos que isto significa que existem mais excretores crónicos”, sublinha Javier Martin. “A boa notícia é que agora sabemos disto e podemos preparar-nos.”

O número cada vez menor de casos de poliomielite endémica no mundo e os perigos de se administrar a vacina com o vírus atenuado – que poderá vir a originar mais doentes de poliomielite do que o vírus selvagem – levou a OMS a recomendar aos países a vacinação das crianças com o vírus morto, pela via intravenosa. Em Portugal, desde 2006 que é administrada essa vacina. No Reino Unido, desde 2004. Mas na Ucrânia, ainda é administrada a vacina oral, que acabou por gerar o novo surto.

Por isso, a situação torna-se delicada. Apesar da vacina oral ser cada vez mais desvantajosa, a vacina intravenosa pode não proteger contra vírus provenientes de casos como aquele que foi descrito no artigo da PLOS Pathogens, que, embora sejam raríssimos, existem. Para Javier Martin, é possível precaver estas situações: “Sabemos que precisamos de manter níveis altos de imunização até o último vírus da poliomielite ser aniquilado da Terra, que precisamos de procurar a presença do vírus em amostras clínicas e no ambiente, que temos de descobrir tratamentos antivirais para travar a excreção do vírus para o ambiente nestes pacientes e que precisamos de novas vacinas para a era pós-erradicação. E, de facto, é isso que nós e outros laboratórios no mundo estamos a fazer.”

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