Argentina para o jantar

O Próximo Futuro começa hoje a despedir-se: não é um até já, é mesmo um adeus. Vamos ter saudades de certas verdades sobre a família que o teatro latino-americano nos atirou à cara, mas até lá ainda há mais três serões desses: sentemo-nos ao sofá com os argentinos de El Loco y la Camisa.

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Duas obsessões do teatro argentino juntas num espectáculo: a família e a tensão entre a verdade e a mentira MARIANA FOSSATTI
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MARIANA FOSSATTI

Tem o seu próprio álbum de família, o rapaz com uma terrível compulsão – a compulsão para dizer sempre a verdade, mesmo quando é mais devastadora do que a mentira – que se senta no sofá de El Loco y la Camisa para estragar o jantar mesmo antes de ele estar na mesa.

É um álbum de família da Zona Sul, o que diz muito a quem vem dessa cidade-país viciada em teatro e psicanálise, Buenos Aires, mas pouco a quem nunca a viu a não ser à distância, e logo desde uma sala de teatro da cauda da Europa: Zona Sul, explica Nelson Valente, encenador do espectáculo com que o Próximo Futuro começa a despedir-se dias 5, 6 e 7 na Sala Vermelha do Teatro Aberto, quer dizer paisagem de subúrbio de classe média-baixa, e portanto pai violento, mãe submissa, filha que quer fugir a um destino de subúrbio com o primeiro namorado da Zona Norte que lhe aparece à frente, e filho que se senta no sofá para atirar à cara de todos, num jantar que podia ser de noivado, as verdades que era melhor que fossem mentira (mas como não são, é mais confortável para todos dizer que está louco, sofrer um bocado com isso, e a seguir levá-lo a um psiquiatra que o neutralize com comprimidos).

Estamos finalmente situados: são assim os serões no sofá do teatro argentino, o tipo de sofá em que é difícil não estar sempre a mudar de posição e, ao mesmo tempo, o tipo de sofá que é muito difícil abandonar. “Bom, a maioria dos argentinos descende de italianos… É fatal, a família é muito tentacular: há esta tradição de continuarmos juntos, de vivermos juntos, ou de pelo menos nos encontrarmos aos domingos para comer, por mais profundas e insanáveis que sejam as diferenças e as divergências. Há gente que se odeia mas que sempre se junta para festejar o Natal – talvez seja assim em muitos lugares, mas na Argentina a família permanece uma instituição particularmente forte e particularmente decadente”, sublinha Nelson Valente ao Ípsilon.

É a essa família disfuncional – não há outra família no teatro argentino, que ainda por cima tem nela o seu tópico mais obsessivamente recorrente – que pertence o rapaz de El Loco y la Camisa. Ao longo dos últimos anos, em anteriores edições deste mesmo Próximo Futuro que António Pinto Ribeiro abriu àquilo a que dantes chamávamos Terceiro Mundo (ver entrevista nestas páginas), mas também no Festival de Almada (que no ano passado organizou todo um ciclo dedicado ao Novíssimo Teatro Argentino) ou na Culturgest, conhecemos outras, mais ou menos afastadas. Enchem um álbum: do diário clínico de uma mãe maníaco-depressiva, a sua própria mãe, que Lola Arias atirava para cima do palco em Melancolía y Manifestaciones (Culturgest, 2013) ao pai aterrado em casa depois de décadas de abandono e deserção que Nacho Ciatti enfiava na cama em Alemania (Festival de Almada, 2014), passando pelas famílias nada tradicionais para um país tão hiper-católico como a Argentina, género mulheres com mulheres, que Claudio Tolcachir mostrou em El Vento en un Violín (Festival de Almada, 2013), e por esse outro de jantar de noivado, o de Fauna (Festival de Almada, 2014), que Romina Paula foi pilhar a Tennessee Williams por não ter dinheiro para pagar os direitos da tradução de Jardim Zoológico de Cristal. Todas nos ficaram próximas. Mas, apesar da distância geográfica, e até política – é preciso atravessar a fronteira com o Chile –, continua a não haver nenhuma outra família de que El Loco y la Camisa esteja tão próximo como a Gladys de Elisa Zulueta (Próximo Futuro, 2012), em que uma mulher trazia um fato-de-treino roxo, um trolley e o seu síndrome de Asperger para o jantar de Reis em casa do irmão e da irmã que não via há 23 anos e dos três sobrinhos que nunca conheceu.

Também aqui, na Zona Sul de Buenos Aires, termina a família feliz dos jantares de Natal – ou de noivado.

Psicanálise
Verdadeiro fenómeno de culto do teatro argentino, El Loco y la Camisa também começou como espectáculo suburbano – o patamar mais off do circuito independente de Buenos Aires. Teve mais sorte do que a filha que traz o noivo a conhecer a família na esperança de dali poder fugir para sempre: depois de vários anos em cartaz, e da aclamação furiosamente entusiástica do público e da crítica (continuamos em Buenos Aires, onde há 500 peças em cartaz ao fim-de-semana, estes milagres acontecem todos os dias), o espectáculo que Nelson Valente “armou” com os seus actores do Banfield Teatro Ensamble acabou na Avenida Corrientes, o eixo principal do cluster comercial da capital argentina.

Antes de se estrear numa cave que regularmente ficava abandonada, primeiro, e num apartamento onde não cabiam mais de 26 espectadores – assim obrigados a fazer de facto parte da família que se desmoronava à sua frente –, depois, El Loco y la Camisa foi um pequeno sktech de25 minutos para café-concerto, tradição semanal que a companhia de Nelson Valente mantém desde 2000 numa das muitas salas da antiga discoteca de 1.200 metros quadrados que converteu em centro cultural e gere desde então. “São estes espectáculos que nos mantêm vivos, com eles pagamos os salários a 40 funcionários – temos de tudo, até cozinheiros”, diz Nelson. Num certo fim-de-semana em que o tema do café-concerto era a mentira (outra obsessão do teatro argentino e de Nelson Valente), apareceu esta história de uma família castigada pela violência de género que acaba, por causa de uma mancha numa camisa, a ter de jantar o desastre da descoberta da infidelidade do pai.

É um jantar definitivamente estragado, e o público também tem de o comer: apesar de El Loco y la Camisa já não se fazer numa sala de jantar verdadeira de um pequeno apartamento, os espectadores continuam a viver o espectáculo como se vivessem uma verdadeira discussão de família. “Ainda há essa empatia: essa vontade de dar um soco ao pai, de dar um abraço ao filho nunca se perdeu. Os nossos espectadores continuam a chorar e a rir juntos”, conta Nelson. Não sabe exactamente o que é que tornou este que é apenas um dos 500 sketches sobre a família que escreveu para o café-concerto – não é ficção: dos 800 pequenos textos criados para o efeito desde 2000, 500 põem o dedo nessa ferida – um espectáculo em cartaz há cinco temporadas. Sabe que a família o fascina e que se transforma num “ladrão de situações” sempre que está numa reunião, num jantar, numa festa: “Tenho um ouvido especial para os pequenos maus-tratos quotidianos que se subentendem nos diálogos mais banais. São muito frequentes, as famílias psicotizantes. Normalmente medicam-se os psicóticos, mas as famílias continuam lá, a fazer os seus estragos. Acho que é nisso que os espectadores se revêem.”

Tal como milhares (milhões?) de outros habitantes da segunda cidade mais psicanalisada do mundo, a seguir a Nova Iorque, Nelson Valente faz terapia todas as semanas. O teatro não a substitui, mas alimenta-a. E ela alimenta-o também: “Sei de pessoas que depois de se verem espelhadas em El Loco y la Camisa perceberam que eram passivas, ou vítimas de uma forma subtil de maus-tratos – não é tão incomum assim, em Buenos Aires há pelo menos um femicídio por dia… – e que foram a correr falar disso ao terapeuta. Comigo acontece ao contrário: o tema da minha sessão semanal de terapia vai parar ao que escrevo, é fatal como o destino.”

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